19 julho, 2006

Carta a um Católico Romano*

Tradução: Duncan Alexander Reily

(Transcrita de “Metodismo Brasileiro e Wesleyano”, São Bernardo
do Campo: Imprensa Metodista, 1981, p.123 a 132)

1. Ouvistes dez mil estórias de nós, que somos comumente chamados protestantes. Se credes em apenas um milésimo destas estórias, deveis pensar muito mal de nós. Mas isto é exatamente contrário ao preceito do Senhor, "Não julgueis, para que não sejais julgados", e tem muitas conseqüências más, particularmente o seguinte: inclina-nos a pensar mal de vós também. Portanto, de ambos os lados, somos menos prontos a ajudar-nos mutuamente e mais propensos a prejudicar um ao outro. Daí se destrói completamente o amor fraternal; e cada grupo, encarando o outro como de monstros, dá lugar à ira, ao ódio, à maledicência, a todo o sentimento inamistoso, o que freqüentemente tem resultado em barbaridades desumanas, quase desconhecidas entre os pagãos.

2. Não poderíamos fazer alguma coisa, mesmo admitindo que cada grupo (católicos e protestantes), retivesse as suas próprias opiniões, para amolecer os nossos corações, refrear este dilúvio de malevolência, e restaurar, pelo menos em algum grau, o amor entre os novos vizinhos e compatriotas? Não o quereis vós? Não estais plenamente persuadidos que malignidade, ódio, vingança, crueldade, quer da nossa parte, quer da vossa, em nosso coração ou no vosso, é uma abominação ao Senhor? Sejam acertadas ou erradas as nossas opiniões, os sentimentos acima referidos certamente são errados! Constituem aquele caminho largo que conduz à destruição, ao inferno mais profundo!

3. Não suponho que toda a amargura e inimizade estejam do vosso lado. Sei que há bastante do nosso lado também; tanto que receio que muitos protestantes (assim chamados), hão de irar-se contra mim, por escrever-vos desta maneira, e dirão: "Tu estás favorável demais aos católicos; eles não merecem tal consideração de nossa parte".

4. Mas eu creio que a mereceis. Creio que mereceis a mais amável consideração que eu possa mostrar, mesmo porque foi o mesmo Deus que nos criou a ambos do pó da terra, e nos fez capazes de amá-lo e gozá-lo eternamente; ademais, o Filho de Deus comprou todos nós com o seu próprio sangue. Mereceis ainda esta ternura por serdes tementes a Deus (como sem dúvida muitos o são) e por vos esforçardes para terdes uma consciência limpa de ofensa perante Deus e o homem.

5. Buscarei, tão suave e inofensivamente quanto possível, reduzir a base da vossa inimizade, expondo claramente a nossa crença e prática, para que possais ver que não somos tais monstros como talvez imaginais. Um verdadeiro protestante expressa a sua crença em palavras como as seguintes:

6. Estando seguro de que há um Ser infinito e independente, e que é impossível existir mais do que um, também creio que este único Deus é o Pai de todas as coisas, especialmente dos anjos e dos homens; que Ele é, de maneira especial, o Pai daqueles que Ele regenera pelo seu Espírito, os quais Ele adota no seu Filho, como co-herdeiros com Ele, e os coroa com uma herança eterna; mas num sentido ainda mais elevado, é o Pai do seu único Filho, o qual gerou desde a eternidade.

Creio que este Pai de todos, não só pode fazer tudo o que lhe apraz, mas possui o direito eterno de fazer o que, quando, e como lhe apraz, de possuir e dispor de tudo quanto criou; e que Ele, da sua própria vontade, criou o céu, a terra e tu­do que neles há.

7. Creio que Jesus de Nazaré foi o Salva­dor do mundo, o Messias anteriormente prometido, que, sendo ungido pelo Espírito Santo, foi profeta, revelando-nos a vontade plena de Deus; que foi Sacerdote, que se entregou como sacrifício pelo pecado, e ainda intercede pelos transgressores; que é Rei, que possui toda a autoridade no céu e na terra e que reinará até que subjugue todas as coisas.

Creio que Ele é o próprio, natural Filho de Deus, Deus de Deus, verdadeiro Deus de Deus; e que é o Senhor de todos, tendo absoluto, supremo e universal domínio sobre todas as coisas; mas, de nós que nele cremos, Ele é o Senhor por conquista, por compra, e por obrigação voluntária.

Creio que foi feito homem, unindo a natureza humana à divina em uma só pessoa; sendo concebido pela obra singular do Espírito Santo, nascido da abençoada Virgem Maria, que, tanto antes, como depois de dar-lhe à luz, continuou virgem pura e imaculada.

Creio que Ele sofreu dores inexprimíveis tanto no corpo como na alma, e finalmente a morte, mesmo a morte de cruz, na época em que Pôncio Pilatos governava a Judéia, sob o Imperador Ro­mano; que o seu corpo foi colocado no túmulo, e a sua alma foi até ao lugar aos espíritos separa­dos; que ao terceiro dia ressurgiu dos mortos; que subiu ao céu, onde permanece no meio do trono de Deus na excelcitude do poder e da glória, como Mediador até ao fim do mundo, como Deus para toda a eternidade; que, finalmente, descerá do céu para julgar todo o homem segundo as suas obras; tanto aqueles que ainda vivem, como to­dos os que já antes morreram.

8. Creio que o infinito e eterno Espírito de Deus, co-igual com o Pai e o Filho, não só é perfeitamente santo em si, como também a causa imediata da santidade em todos nós; iluminando a nossa mente, retificando a nossa vontade e os nossos afetos, renovando a nossa natureza, unindo a nossa pessoa a Cristo; assegurando-nos de nossa adoção de filhos, guiando-nos em nossas ações; purificando e santificando as nossas almas e corpos, para um pleno e eterno gozo de Deus.

9. Creio que Cristo, pelos seus apóstolos, ajuntou para si uma Igreja, à qual continuamen­te acrescentava aqueles que iam sendo salvos; que esta Igreja Católica (isto é, universal), estendendo-se a todas as nações e todas as idades, é santa em todos os seus membros que têm comunhão com os santos anjos, que constantemente ministram aos herdeiros da salvação; e com todos os membros vivos da Igreja sobre a terra, bem como todos que partiram na sua fé e no seu temor.

10. Creio que Deus perdoa todos os pecados daqueles que realmente se arrependem e crêem sem fingimento no seu santo evangelho e que, no dia final, todos os homens hão de ressuscitar, cada um com seu próprio corpo.

Creio que, assim como os injustos, após a ressurreição, serão atormentados eternamente no inferno, também os justos hão de gozar uma felicidade inconcebível na presença de Deus por toda a eternidade.

11. Há objeções a qualquer item anteriormen­te exposto? Há aqui qualquer ponto que não credes também?

Mas entendeis que devemos crer mais ainda. Não vamos, no momento, entrar nesta disputa. Só deixai-me perguntar: "Se alguém sinceramente crê tudo isso, e o pratica, pode qualquer pessoa persuadir-vos de que tal homem há de perecer eternamente?"

12. "Mas ele (o protestante) pratica tudo isso?" Se não, concordamos que a sua fé não o salvará! O que me leva a mostrar-vos, em poucas palavras, singelas e claras, a prática de um verdadeiro protestante.

Digo, um verdadeiro protestante, pois eu re­jeito todos de conversação torpe, os que não guardam o domingo, os alcoólatras, os incontinentes, os mentirosos, os desonestos, os avarentos; enfim, todos os que vivem em pecado aberto. Estes não são protestantes; não são cristãos de qualquer espécie. Dai-lhes o seu nome verdadeiro: são pagãos. São a maldição da nação, a perdição da sociedade, a vergonha da raça humana; a escória da terra.

13. Um verdadeiro protestante crê em Deus, tem plena confiança na sua misericórdia, teme-o com amor filial, e o ama com toda a sua alma. Ele adora a Deus em espírito e verdade, e em tudo lhe dá graças; invoca-o com o seu coração e não só com os lábios, sempre e em todo o lugar; honra a seu santo nome e a sua palavra, e verdadeira­mente o serve todos os dias da sua vida.

Não aprovais tudo isto? Há aqui qualquer ponto que possais condenar? Vós o praticais também? Podeis ser felizes se não o praticardes? Podeis esperar a verdadeira paz neste mundo e no vindouro se não credes em Deus por meio de Cris­to? Se não temerdes e amardes a Deus? Meus caros amigos, considerai, não vos estou persuadindo a deixar ou mudar a vossa religião, mas a seguir aquele temor e amor de Deus sem o qual toda a religião é vã. Não vos digo palavra alguma sobre as vossas opiniões ou formas externas de culto. Mas afirmo que todo o culto é uma abominação ao Senhor, a não ser que vós o adoreis em espírito e em verdade; com o coração bem como com os lábios; com o espírito, e também com o entendi­mento. Seja qual for a vossa forma de culto, em tudo dai graças ou é trabalho perdido. Praticai quaisquer usos externos que desejardes; mas honrai o seu nome santo e a sua Palavra, e servi-o verdadeiramente todos os dias da vossa vida.

14. Também, um verdadeiro protestante, ama ao seu próximo, isto é, todo o homem, amigo ou inimigo, bom ou mau, como a si mesmo, como ama a sua própria alma, como Cristo nos amou. E como Cristo deu a sua vida por nós, assim o verdadeiro protestante está pronto a dar a sua vida pelos irmãos. Ele mostra esse amor fazendo a todos os homens tudo aquilo que ele deseja que lhe façam. Ele ama, honra, e obedece a seus pais e os ajuda até ao máximo de suas forças. Honra e obedece ao Rei e a todos investidos de autoridade. Alegremente se submete a todos os seus governadores, mestres e pastores espirituais, e senhores. Ele se comporta humilde e reverentemente perante os seus superiores. Não prejudica a ninguém por palavra ou ato. É sincero e justo em to­dos os seus negócios. Não nutre rancor ou ódio no seu coração. Abstém-se de falatórios, de menti­ra, de calúnias; nem se encontra dolo na sua boca. Sabendo que o seu corpo é templo do Espírito Santo, ele o mantém com sobriedade, temperança e castidade. Não cobiça os bens dos outros, mas se contenta com o que tem; e trabalha para ganhar a sua própria vida, e cumprir plenamente a vontade de Deus naquela posição de vida onde agradou a Deus colocá-lo.

15. Tendes qualquer coisa a reprovar no ex­posto? Não sois aqui iguais aos protestantes? Se não (dizei a verdade), não sois condenados tanto por Deus, como pela vossa própria consciência? Podeis falhar em qualquer dos pontos aqui sem deixardes de ser um cristão?

Vinde, irmãos, e arrazoemos. Sois corretos, se apenas amardes o vosso amigo e odiardes o inimigo? Não fazem assim os pagãos e os publicanos? Sois ordenados a amar aos vossos inimigos, abençoar aos que vos amaldiçoarem, orar pelos que vos caluniarem e vos perseguirem. Não obedeceis à vocação celestial? Os vossos entranháveis afetos pa­ra com todos os homens — não só para com os bons, mas também para com os maus e ingratos — mostram que sois filhos do vosso Pai que está nos céus? Doutra forma, o que quer creiais e pra­ticais, sois do vosso pai, o Diabo. Estais prontos a dar a vossa vida pelos irmãos? Fazei a todos como quereis que os outros façam? Se não, não enganeis a vossa própria alma; sois ainda pagãos. Amais, honrais e obedeceis aos vossos pai e mãe, ajudando-os ao máximo das vossas forças? Honrais e obedeceis a todos os que têm autoridade, todos os governadores, pastores espirituais e senhores? Vós vos comportais com humildade e reverência diante dos superiores? A ninguém feris por palavras ou ações? Sois corretos e justos em todos os negócios? Sois cuidadosos em pagar tudo o que deveis? Sentis má vontade, inveja, vingança, ódio ou rancor contra qualquer homem? Se assim o fazeis, é claro que não sois de Deus, pois tudo isto é o espírito do Diabo. Falais a verdade de coração a todos os homens , e sempre em meiguice e amor? Sois um verdadeiro israelita em quem não há dolo? Guardais o vosso corpo com sobriedade, temperança, e castidade, sabendo que é Templo do Espírito Santo, e que se alguém profanar o templo de Deus, Deus o destruirá? Tendes aprendido a viver contentes em toda e qualquer situação? Trabalhais para ganhar a vossa própria vida, evitando ociosidade co­mo ao próprio fogo do inferno? O Diabo tenta a outros, mas o homem ocioso tenta ao Diabo. A mente do homem ocioso é a oficina do Diabo, onde ele continuamente opera o mal. Tudo quanto vos vem à mão para o fazer, o fazeis conforme as vossas forças? E fazeis tudo perante o Senhor, como um sacrifício a Deus, aceitável em Cristo Jesus?

Esta, esta tão somente, é a antiga religião. Este é o verdadeiro e primitivo cristianismo. E quando haverá ele de se alastrar por toda a terra? Quando será ele encontrado tanto entre nós como entre vós? Sem esperar pelos outros, que todos nós, pela graça de Deus, nos corrijamos mutuamente.

16. Não estamos de acordo até aqui? Então, demos graças a Deus por isto, e o recebamos como uma nova prova do seu amor. Mas se Deus ainda nos ama, devemos também amar-nos uns aos outros. Devemos, sem discussão sobre opiniões, provocar uns aos outros ao amor e às boas obras. Que os pontos em que temos diferença de opinião fiquem de lado: aqui há suficientes áreas nas quais concordamos, suficientes para serem o fundamento de todo o espírito e ato cristão.

Ó irmãos, não desfaleçamos pelo caminho. Espero ver-vos no céu. E se eu praticar a religião acima descrita, não ousareis dizer que eu vou pa­ra o inferno. Não podeis pensar assim, e ninguém vos poderá persuadir a pensar assim. Vossa própria consciência diz o contrário. Então, se não podemos ainda pensar o mesmo em todas as coisas, pelo menos podemos estar juntos no amor. Nisto, não podeis errar. Pois de um ponto ninguém poderá duvidar nenhum momento: Deus é amor; e quem vive em amor vive em Deus e Deus nele.

17. Em o nome, então, e na força de Deus, resolvamos, primeiro, a não nos ferirmos mutuamente; a não fazer qualquer coisa, descaridosa ou inamistosamente, que não gostaríamos fosse feita a nós mesmos. Pelo contrário, busquemos em cada oportunidade um trato bondoso, amigável, e cristão entre nós.

Resolvamos, em segundo lugar, com a ajuda de Deus, a nada falar áspera ou inamistosamente um do outro. A maneira mais certa para conseguir isto é dizer todo o bem possível, tanto sobre o outro como para o outro em toda a nossa conversação, entre nós ou concernente ao outro, usar só a linguagem do amor, falar com toda a delicadeza e meiguice, com a expressão mais carinhosa e consistente com a verdade e a sinceridade.

Em terceiro lugar, resolvamos não nutrir nenhum pensamento menos caridoso e nenhum espírito inamistoso uns para com os outros. Deitemos o machado à raiz da árvore; examinemos tudo o que nasce em nosso coração, e não admitamos qualquer atitude que seja contrária ao terno afeto.

Então, facilmente evitaremos ações e palavras sem caridade, quando a própria raiz da amargura está decepada.

Esforcemo-nos, em quarto lugar, para mutuamente nos ajudarmos sempre. Regozijemo-nos em fortalecer nossas mãos em Deus. Acima de tudo, que cada um de nós tenha cuidado de si mesmo (uma vez que cada um deve prestar contas ia Deus) que não se afaste da religião de amor, que não venha a ser condenado naquilo que ele mesmo aprova. Ó, que nós (sem nos importarmos com o que os outros fazem), prossigamos para o prêmio da nossa soberana vocação: que sendo justifica­dos pela fé, tenhamos paz com Deus pelo Senhor Jesus Cristo, por intermédio de quem acabamos de receber a reconciliação; que o amor de Deus seja derramado em nossos corações pelo Espírito que nos foi outorgado. Consideremos tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo nosso Senhor; estando pronto a perder todas coisas por Ele, considerando-as como refugo para ganharmos a Cristo.

Sou, vosso servo amistoso, pelo amor de Cristo,

João Wesley

Dublin, 18 de julho de 1749
(Trad. de The Letters of John Wesley, Vol. III, pp. 7-14.)

* N.T. - Apesar de o título estar no singular, Wesley muitas vezes usa o plural. Nós resolvemos tratar a carta realmente como uma carta circular, sempre usando a forma plural.