26 outubro, 2007

Tradição e Modernidade


O que é a tradição? “A tradição, digamos assim, é a cola que une as ordens sociais pré-modernas”, afirma Giddens. A tradição envolve, de alguma forma, controle do tempo.“Em outras palavras, a tradição é uma orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência ou, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência para o presente”. (1997, p. 80)

A Tradição integra e monitora a ação à organização tempo-espacial da comunidade (ela é parte do passado, presente e futuro; é um elemento intrínseco e inseparável da comunidade). Ela está vinculada à compreensão do mundo fundada na superstição, religião e nos costumes; pressupõe uma atitude de resignação diante do destino, o qual, em última instância, não depende da intervenção humana, do “fazer a história”. Dessa forma, conhecer é ter habilidade para produzir algo, está ligado à técnica e à reprodução das condições do viver. A ordem social sedimentada na tradição expressa a valorização da cultura oral, do passado e dos símbolos enquanto fatores que perpetuam a experiência das gerações.

Por outro lado, a tradição também se vincula ao futuro. Mas este não é concebido como algo distante e separado, mas como uma espécie de linha contínua que envolve o passado e o presente. É tradição que persiste, remodelada e reinventada a cada geração. Não há um corte profundo, ruptura ou descontinuidade absolutas entre o ontem, hoje e o amanhã.

A tradição envolve ritual; este constitui um meio prático de preservação. Nas sociedades que integram a tradição, os rituais são mecanismos de preservar a memória coletiva e as verdades inerentes ao tradicional. O ritual reforça a experiência cotidiana e refaz a liga que une a comunidade, mas ele tem uma esfera e linguagem próprias e uma verdade em si, isto é, uma “verdade formular” que não depende das “propriedades referenciais da linguagem”. Pelo contrário, “a linguagem ritual é performativa, e às vezes pode conter palavras ou práticas que os falantes ou os ouvintes mal conseguem compreender. (...) A fala ritual é aquela da qual não faz sentido discordar nem contradizer – e por isso contém um meio poderoso de redução da possibilidade de dissenção”. (p. 83)

A “verdade formular” na qual se funda o ritual necessita de intérprete, o guardião da tradição. O guardião se caracteriza pelo status, isto é, o papel que ocupa na ordem tradicional. Diferentemente do perito, o especialista da ordem social moderna, seu conhecimento se reveste de mistério, se funda na pura crença e tem um sentido místico, ao inacessível ao comum, ao leigo:

“A tradição é impensável sem guardiães, porque estes têm um acesso privilegiado à verdade; a verdade não pode ser demonstrada, salvo na medida em que se manifesta nas interpretações e práticas dos guardiães. O sacerdote, ou xamã, pode reivindicar ser não mais que o porta-voz dos deuses, mas suas ações de facto definem o que as tradições realmente são. As tradições seculares consideram seus guardiães como aquelas pessoas relacionadas ao sagrado; os líderes políticos falam a linguagem da tradição quando reivindicam o mesmo tipo de acesso à verdade formular”. (p. 100)

A interpretação monopolizada pelo guardião constitui uma verdade acessível apenas aos iniciados, isto é, aos que aceitam a verdade revelada pelo guardião e, conseqüentemente, o status deste. A tradição é intrinsecamente excludente: apenas os iniciados, os admitidos, podem participar e compartilhar da sua verdade, do ritual. A discriminação do não-iniciado, o “outro”, é fundamental para fortalecer o status do guardião e do ritual em si: apenas os iniciados têm o direito de compartilharem a sua verdade. O “outro” está fora, a verdade formular lhe é interdita. A identidade do “eu” vincula-se ao envolvimento com o ritual e, portanto, diferenciação em relação ao “outro”.

Nas condições da modernidade, o ritual é reinventado e reformulado. O mesmo ocorre com o guardião, substituído pelo especialista, o perito. A modernidade reincorpora a tradição, reinventa-a, e, neste sentido, também expressa continuidade. Não por acaso, ideologias modernas também se alimentam da tradição. Irmãos e irmãs, companheiros e camaradas de seitas políticas e religiosas, vinculados às mesmas origens, disputam o espólio e quem representa a continuidade da tradição.
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Referência Bibliográfica

BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernidade reflexiva: trabalho e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997.

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