10 maio, 2007

O Samaritano Bom - Uma pedagogia da tolerância a partir de Lucas 10.25-37

*Por Luiz Carlos Ramos
(Para Vastí e Elenise, pedagogas da tolerância e do bem)

Prólogo
Estou cada vez mais convencido de que os textos bíblicos mais conhecidos são também os menos compreendidos. Justamente porque são lidos tão freqüentemente dos nossos púlpitos e são tão recorrentes em nossas prédicas, que acabam por cauterizar (“blindar”, diriam alguns políticos contemporâneos) nossas mentes e corações e tornamo-nos imunes à sua mensagem. Recuperar o frescor original e o impacto que esses textos tiveram sobre seus primeiros ouvintes e leitores é tarefa que, paradoxalmente, o exegeta, o hermeneuta e o homileta, só alcançam com muito esforço e com a graça de Deus. Assim sendo, oramos para que Deus bendiga o nosso esforço e nos dê a graça de lermos e refletirmos sobre esta perícope como se o estivéssemos fazendo pela a primeira vez.

Lucas 10.25-37: 25 E eis que certo homem, intérprete da Lei, se levantou com o intuito de pôr Jesus à prova e disse-lhe: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? 26 Então, Jesus lhe perguntou: Que está escrito na Lei? Como interpretas? 27 A isto ele respondeu: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. 28 Então, Jesus lhe disse: Respondeste corretamente; faze isto e viverás. 29 Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo? 30 Jesus prosseguiu, dizendo: Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o semimorto. 31 Casualmente, descia um sacerdote por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou de largo. 32 Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o, também passou de largo. 33 Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele. 34 E, chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele. 35 No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem, e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar. 36 Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? 37 Respondeu-lhe o intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe disse: Vai e procede tu de igual modo.

Introdução
Em certa passagem, o autor da epístola aos coríntios refere-se à “mente de Cristo” (1Co 2.16). Mas o que é, afinal, a “mente de Cristo”? Ora, a narrativa evangélica que acabamos de ler nos dá uma boa idéia de como a “mente de Cristo” funciona: combinando de maneira fascinante os elementos lógicos e os analógicos.

Vejamos: diante da pergunta perspicaz, feita por um “intérprete da Lei” (“com o intuito de pôr Jesus à prova”, v. 25), Jesus responde, com igual perspicácia, devolvendo ao interlocutor a pergunta: “Que está escrito na Lei? Como interpretas?” (v. 26). Jesus, aqui, apela para a lógica e a objetividade da Lei, conhecida do interlocutor, uma vez que este era especialista em sua interpretação. À pergunta objetiva de Jesus, o intérprete respondeu citando uma conhecida síntese legal que os advogados de então carregavam, literalmente, na manga (era costume trazerem atadas à manga das vestes, tiras com resumo de leis, para consultas rápidas): “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (v.27). À resposta tão objetiva do intérprete, segue-se a conclusão lógica e sumária de Jesus: “Respondeste corretamente; faze isto e viverás.” (v. 28).

Entretanto, como sabemos, o que o intérprete buscava era, antes, um pretexto para “incriminar” Jesus. Por isso insiste, deixando a lógica de lado (a gente sempre deixa a lógica de lado quando isso nos favorece ou interessa): “Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo?” (v. 29). É aqui que entra em ação o lado “analógico” da “mente de Cristo”: “Jesus prosseguiu, dizendo: Certo homem descia de Jerusalém para Jericó...” (vv. 30ss). Se a argumentação objetiva não surte efeito, então, tentemos a subjetiva! Jesus recorre à metáfora, à parábola, à linguagem simbólica, à força da imagem e ao poder da imaginação. Sua narrativa descreve uma cena com inúmeras contradições lógicas e paradoxos teológicos. Observemos mais atentamente alguns desses contrastes:

Primeiro: sabe-se que Jerusalém fica a cerca de 740m (de altitude) acima do nível do mar, enquanto Jericó, a 400m (de baixitude) abaixo do nível do mar na região do mar morto. Por essa razão, numa pequena distância de menos de 30km há um desnível de mais de 1.100m. É um caminho íngreme, cheio de desfiladeiros, ideal para as emboscadas e a ação de salteadores (funcionava assim como uma espécie de “Linha Vermelha” dos tempos neotestamentários). Ninguém, em sã consciência, se aventuraria a passar por ali a não ser que estivesse bem guardado. Por essa razão, as pessoas que tinham que fazer esse trajeto, geralmente, viajavam em caravanas. Ao que tudo indica, portanto, a vítima da parábola não era exatamente alguém a quem se poderia chamar de “prudente”. Hoje, se diria que ele “deu sopa pro azar”.

Uma segunda questão: geralmente pensamos que o sacerdote e o levita, que passaram “de largo”, faltaram com suas obrigações, mas isso não é bem verdade. Pois havia leis muito claras e rígidas que diziam que os que exerciam funções religiosas ficariam impedidos de realizá-las caso tocassem em um cadáver, ou em um estrangeiro, pois estariam ritualmente impuros. Ora, esses senhores fizeram o que parecia certo, o que era mais lógico. Devem ter pensado: “Esse que está aí no chão pode ser um estrangeiro e pode me contaminar e impedir-me de realizar minhas funções. Ou pior, pode estar morto e, neste caso, nada poderei fazer mesmo para ajudá-lo. Além do que, se esse sujeito se aventurou a viajar por estas paragens desacompanhado, é porque era mesmo um irresponsável e imprudente — teve, portanto, o que merecia. Pensando bem, isso aqui bem pode ser uma emboscada. Ele pode estar fingindo para me atrair e, assim que eu chegar perto, salteadores cairão sobre mim, tornando-me a verdadeira vítima desta história suspeita.” Portanto, a lógica e o bom senso sugeriam a esses senhores que não haveria nada mais inteligente a fazer, a não ser dar o fora dali o mais rápido possível. Não devemos recriminá-los por isso, pois não fazemos nós exatamente a mesma coisa quase todos os dias, quando passamos por pessoas em situações semelhantes nas estradas, nos semáforos, nas calçadas...?

Finalmente, entra em cena o “samaritano” (que em nenhum lugar no texto é chamado de “bom”, a não ser no título que lhe emprestou a tradição e o tradutor, João Ferreira de Almeida). Esse samaritano, sim, quebra todas as regras do bom senso. Aproxima-se do perigo. Quando está bem perto, não pode deixar de notar que a vítima era um desses judeus arrogantes por quem os samaritanos nutriam um desprezo sistemático, mas isso não o impede de aproximar-se ainda mais. Importa-se com um semi-morto. Correndo o risco de ser ele também tomado de assalto e terminar do mesmo jeito que aquele que está diante dele, detém-se a cuidar dos seus ferimentos: “E, chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho” (v. 34). E mais, servindo-se do seu próprio meio de transporte, levou-o até uma hospedaria onde a vítima pudesse ser tratada e recuperar-se dos seus ferimentos (em gr. traumata). E ainda, mais, gastou parte do seu dinheiro com tudo isso.

A pedagogia do certo
Como se pode ver, nessa história, não há dúvida alguma a respeito de quem teria feito o certo. Quem fez o certo foram o sacerdote e o levita. Eles cumpriram os preceitos religiosos; eles usaram de bom senso, evitando o perigo; eles usaram a lógica e a inteligência para salvar a pele.
Sim, quem fez tudo errado foi o samaritano: arriscou-se, quebrou preceitos, rompeu com o bom senso, desperdiçou suas reservas de medicamentos e ataduras, perdeu tempo e dinheiro — além de tudo, o homem tomou prejuízo!? (acho que isso foi o que mais impressionou os interlocutores de Jesus, pois sabemos de sua fama de avarentos).

Se o sacerdote e o levita fizeram o que era certo, e quem procedeu errado foi o samaritano, porque Jesus considera este último o herói da história? Esta é realmente uma questão intrigante. Parece que a chave para entendermos tudo está dada no versículo 33: “Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele” (não se trata, portanto, de um “bom samaritano” —como se fosse um bom carioca, ou um bom paulista, etc.— mas de um samaritano bom —como seria um carioca bom, ou um paulista bom, etc..).

O verbo “compadecer-se” (em gr. splagchnizomai) deriva de splagchnon, que significa “vísceras”, “intestinos”, “entranhas”. Trata-se daquele sentimento que faz com que o estômago fique embrulhado, revirado, diante do sofrimento humano; tal compaixão é aquela que faz a gente ficar enojado, que solta os intestinos, que dá ânsias de vômito...
Perdoem-me se fazer essas alusões soe como mau gosto e conversa de mau tom. Mas esta é a chave para entendermos a “mente de Cristo” e a sua proposta pedagógica, nesta perícope: É que quando a gente está na academia, e preocupado com a educação formal, tendemos a nos concentrar naquilo que é certo (a verdade/razão), e naquilo que é inteligente (lógica!). Assim, parece natural que, quanto mais seguros estivermos de estarmos certos, e de estarmos do lado da verdade, mais justificativa encontramos para nossos atos de indiferença e, pior, de intolerância. Nesse sentido, fazer o que é certo, é o primeiro passo para a intolerância, porque, surpreendente e paradoxalmente, saber a verdade pode funcionar como antídoto para a compaixão.

A pedagogia do bem?
Qual é, então, a questão proposta por Jesus, aqui? O problema não é ter que escolher entre fazer o certo ou o errado. A questão está entre fazer o certo ou fazer o bem! Em outras palavras, com esta parábola, Jesus estava propondo que quando tivermos que optar entre fazer o certo ou fazer o bem, devemos sempre escolher fazer o bem!

Como academicistas, reforçamos a idéia de que, para se fazer o certo, devemos exercitar a razão, e é isso mesmo, e assim devemos fazer sempre; mas nunca devemos perder a noção de que o certo não é mais importante do que a Vida: “O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Mt 2.27). Se a nossa pedagogia do certo nos impede de sermos melhores e mais humanos, se nos incapacita para sentirmos indignação e nojo pela miséria e pela degradação da grande comunidade universal, e se nos torna intolerantes ou indiferentes ao sofrimento do nosso vizinho, a ponto de guardarmos cada vez mais distância dele, algo vai muito mal conosco e com a nossa pedagogia.

Entretanto, como desenvolver nas nossas escolas uma pedagogia que vá além do certo? Como ensinar os “entranhados afetos de misericórdia” (Fp 2.1) aos quais o Novo Testamento se refere de modo tão enfático? Haverá quem diga que isso é impossível, que extrapola as competências da escola, que é subjetivo demais para a academia. As estatísticas sobre a violência nas escolas (envolvendo tanto alunos quanto professores) parecem reforçar essa noção. Mas tudo o que essas estatísticas, de fato, confirmam, é que não basta ensinar o certo para que as pessoas sejam melhores. Ora, não adianta ensinar o certo se não somos capazes de aprender o que é realmente bom para todos nós.

Conclusão
Desenvolver, ao lado da pedagogia do certo, uma pedagogia do bem, talvez seja o caminho da educação para a tolerância e a espiritualidade (o nobre objetivo que o Cogeime se propõe a perseguir, nesta Assembléia). Porque só é intolerante quem tem certeza de que está fazendo o que é certo, mas nunca é intolerante o que está certo de estar fazendo o bem.
Ou desenvolvemos uma maneira de nos comunicarmos com as “entranhas” dos nossos alunos e alunas, ou acabaremos todos vítimas da intolerância fatal e sumária que haverá de nos tornar a todos cada vez mais sapiens e menos homo.

A análise da “mente de Cristo” nos ajuda a entender como os aspectos lógicos e os analógicos podem corroborar para o triunfo do espírito da vida sobre a lei da intolerância e da morte. Ao final da parábola (analogia), Jesus, apela novamente para a lógica (irredutível e inescapável) que oferece a conclusão do seu arrazoado: “Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe o intérprete da Lei [e notem que, logicamente falando, a resposta não poderia ser outra]: O que usou de misericórdia para com ele.” (v. 37).

Tal era a pedagogia de Jesus: uma proposta de diálogo entre a razão e o estômago, entre o intelecto e os intestinos, entre o cérebro e o coração. Contudo, Jesus propõe o primado da vida sobre os preceitos ao defender que quando tivermos que optar entre fazer o certo ou fazer o bem, devemos escolher sempre fazer o bem!
Quanto à pedagogia do certo: pratiquemo-la, e aprenderemos muitas coisas.
E quanto à pedagogia do bem, é Jesus quem diz: “faze isto e viverás” (v. 28)!

Abril, 2007.

__________

*Luiz Carlos Ramos é Professor da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista