10 outubro, 2006

Acalanto para afastar bicho-papão

Por: Marcelo Barros *

As histórias infantis gostam de falar em encantamentos que se apoderam das pessoas, como um sono mortífero, do qual só uma vara de condão ou um beijo do príncipe encantado pode libertar. No mundo atual, este encantamento não tem ocorrido por algum pó de pirilipimpim, mas pelo sortilégio da propaganda que escolhe crianças e jovens como alvo prioritário e as seduz como clientes de um consumo que vicia como droga. E, quanto mais consumismo, mais angústia e divisão interior.

É verdade que 42 milhões de brasileiros, ainda reduzidos à extrema pobreza, nem têm como cair na sedução do consumo. Entretanto, são igualmente vítimas da publicidade que os hipnotiza com força e crueldade maior ainda, visto a distância entre o desejo e as possibilidades reais de consumo. Quantas crianças e adolescentes, vivendo em situação de extrema pobreza, vivem em função de desejos de consumo que se tornam verdadeiros fetiches.

No clássico Doskedaden, o cineasta Akira Kurosawa mostra o menino pobre que se imagina um trem e passa o filme inteiro gritando "dos-ke-da dem", como ele supõe ser a cantiga da locomotiva. No entanto, mostra também o olhar da mãe que vê um barraco fétido e, em sua imaginação, o transforma em um palácio colorido. É também, certamente, certa magia ilusória que leva à invasão idólatra de shoppings, muitos jovens e crianças pobres que se endividam até a alma para usar o tênis da moda ou a roupa do momento. Hoje, um bilhão e meio de pobres tem menos de 18 anos. Enquanto a sala de visita do mundo parece luminosa e sedutora, a realidade de dentro dos lares é bem mais trágica. 150 milhões de crianças sofrem de má nutrição e não têm acesso à escola.

A cada ano, morrem 15 milhões de menores de cinco anos. E neste mundo da "criança esperança", dez milhões ainda vivem como "meninos de rua". Não há dados sobre quantas crianças são vítimas de violência sexual. O fato é que, em todos os continentes, elas continuam sofrendo todo tipo de desrespeitos, violências e crueldades. "Conforme estudo da ONU publicado neste início de outubro, grande parte da violência contra as crianças no mundo continua"invisível" para a Justiça, já que ocorre em casa, nas escolas e na comunidade onde elas vivem. (...) Por ano, 150 milhões de meninas e 73 milhões de meninos são forçados a ter relação sexual e entre 100 e 140 milhões de meninas sofrem mutilação genital". (O Estado de S.Paulo, 04/10/2006, p. C8). É de monstruosidades como estas que precisamos resgatar nossas crianças.

A ONU aprovou a Convenção Internacional dos Direitos da Criança em 1989. O acordo foi assinado por todos os países, com exceção de dois: a Somália e, por mais estranho que possa parecer, os Estados Unidos, cujo governo continua ameaçando invadir países pobres, sob o pretexto de que não respeitam a democracia e os direitos humanos. Mas dentro do território dos Estados Unidos, empresas exploram o trabalho dos menores em tarefas pesadas e o governo norte-americano faz vistas grossas à utilização de crianças como armas de guerra contra o "terrorismo", pelos aliados. Para as famílias que festejam o dia das crianças, talvez estas preocupações pareçam longínquas. Entretanto, o melhor presente que se pode oferecer às crianças é garantir as condições para que adquiram a consciência de sua dignidade; a segurança de serem o que são e a liberdade íntima de não ser dependente do consumo que mascara as verdadeiras necessidades da vida - que já são tantas. Em tal ambiente, pensarão nas outras crianças de todo o mundo e formadas, serão impelidas ao compromisso de defender a dignidade de todos. Este é um apelo que toca a todos os homens e mulheres sensíveis à justiça, e deve ser imperioso aos que crêem em um Deus que se revela no rosto inocente dos menores.

A tradição espiritual judaico-cristã coloca a criança no centro da vida social. Conforme a Bíblia, para as comunidades judaicas e cristãs, a criança é revelação do rosto de Deus Amor. No Evangelho, Jesus Cristo revela a opção que Deus assume de se mostrar pequeno e junto com os pequeninos. Ele fez de cada criança, sinal do Reino de Deus e disse ao seu grupo de discípulos e discípulas:

"Quem acolhe a uma criança no meu nome, é a mim que acolhe" (Lc 9, 37).

* Monge beneditino e autor de 26 livros. mosteirodegoias@cultura.com.br

Fonte: Adital