07 outubro, 2006

Espírito da Carne de Deus

Por: Marcos de Araújo Oliveira

Espírito Santo de Deus, vem encher este lugar, de Ti.
Sim, este lugar está vazio, oco; ecos das lágrimas que gotejam
ressoam por todo buraco inabitado, desolado.
Espírito Santo de Deus, volte, inunde esta Terra de farrapos, cacos;
assopre e arraste os restolhos de mundos passados que
residem escondidos, bandidos, prestes a nos perfurar.

Não há Espírito sem carne. Ou melhor, não há Espírito sem a carne. Coexistem, ambos, numa sinergia dançante, galante, digna de sonatas e orquestras. O Universo é um gracioso salão de baile, no qual desfilam a carne, pulsante, suculenta, macia, tenra, e o Espírito, liso, solto, selvagem, criança. E o maciço da carne reverbera de cantos em cantos, passeia, preenche espaços vazios, esbarra-se, expande-se; o Sopro do Espírito espraia-se, acompanha, espichado, os movimentos da carne, altera-se, sobe e desce, brinca, entra e sai, sussurra e murmura, geme, arrepia e lambe e embrulha.

Experimente-se, porém, desatá-los, prendê-los em lados opostos, como crianças birrentas postas de castigo. Tente-se, por pirraça ou crueldade, espantar o Espírito com varadas e palmatórias, deixando a carne oca, desolada e inabitada. Vagará sem rumo o Espírito, levado inconsciente pelos ventos; morrerá solitária a carne, desprovida de seu maior alimento.

Não mais risos, nem dança; apenas o lento apodrecer de um, e o rápido desvanecer do outro.

De coração estiolado confirmo: assim apodrecem, assim desvanecem muitos crentes. Vejo que tiraram de si não o espírito-alma, pois isso seria tirar a própria vida; mas arrazoaram que o Espírito, o Sopro Divino, não deveria permanecer neles, mas sim estar esparramado pelos ares deste mundo. E que, ao invocá-Lo, desceria sobre as carnes o membro gasoso da Trindade, preenchendo-as, reanimando-as, ressuscitando-as. E Nele colocaram uma coleira, já que a coroa de espinhos esfarelava e para nada mais servia...

As igrejas enchem-se, agora, de urros e grunhidos. Fogueiras santas são criadas, e invoca-se o Nome, ordena-se ao Nome, para que Dele desprendam-se as lufas de ar divino que curam, saram e revitalizam – sendo, não raro, ordenar, ou ordenhar das tetas da Santa Carne, o despejo de vingança, guerra, morte e esfacelamento do inimigo, do diferente, da gente...

As carnes se deterioram e o Espírito se esfumaça, raso, ralo.

Detenho-me, às vezes, diante dos pregadores, dos crentes. E me questiono a quem dirigem seu clamor. Seus olhos estão lagrimados, suas mãos levantadas, os corpos gingam para lá e para cá, a mente está longe, absorta. Dos pulmões saem gritos graves, molhados, sufocados por concentrações salivares e abafados pelo ar quente advindo da goela. Às vezes, caem. Como serpentes escaldadas pela areia tórrida do deserto, espevitam suas carnes, fazem movimentos circulares, ziguezagueantes; esfolam a pele adormecida no chão pisoteado, águam a terra com suas lágrimas. Mas me parecem tão azedas essas lágrimas! Cítricas, espremidas de um limão esborrachado ao chão! Não germinam a terra, mas maculam-na com desespero e fel.

E a quem dirigem seu clamor? Ao Espírito? Será que Ele, por despeito e vingança, resolveu atacar as carnes que O abandonaram? Não! Crer nisto seria revogar o amor eterno do Santo Nome, o Seu perdão e misericórdia. Será, então, que o Espírito realmente aja assim, que Seu Sopro é, na verdade, um tufão desregrado de emoções, animalesco e grotesco? Mas, se assim o for, por que então me despreza? Teria eu construído uma trincheira tão intransponível que nem mesmo o Criador deste mundo poderia penetrar? Sou maquete deste Deus, deste Sopro, e pelas mãos Dele é que fui criado. Responda-me, Santo Nome, Tu me criaste para ser o mendigo que olha esfomeado para o banquete? Tu me arquitetaste para ser criança malcriada que a todos importuna por querer ir embora da festa? Até que venha de Ti a final resposta – que ingenuamente acredito ainda vir – continuarei a achar que arrancaram Teu Santo Espírito das carnes; O engaiolaram, O escravizaram. Enquanto isso, a carne apodrece...

Olho para o céu. Procuro o Sopro que, como um pimpolho assustado, enfurna-se por entre as nuvens, escondendo-se de nós, músculos malfeitores. Como pudemos fazer isso Contigo? Ó Santo Nome, Sopro Santo, Divino Deus, o que é minha carne sem Ti? Volte a habitá-la, para que dancemos juntos novamente! Constitua em mim Tua morada, Teu esconderijo! Reproduza-se em e por meio de mim!

Sem a carne não há Espírito! Como poderia o Consolador consolar o que não existe? Como seria o Conselheiro aconselhar a quem dificuldades nunca teve (pois nunca viveu!)? "O Espírito Santo de Deus habita em vós!". Sim! Pois cada existir é um Universo! Cada carne, um Espírito! E é assim que Tu, Nome, se dividi sem nunca se encolher.

Olho os namorados, trêmulos diante de fronhas encharcadas de suor, e lá Te vejo; contemplo a criança que se levanta de seu penico, e lá Te enxergo; agarro a mão do amigo que sofre, e lá Te sinto; as folhas suspendem-se ao ar, a noite ronca por meio das cigarras, o orvalho pinga na cabeça do cachorro adormecido que acorda, o cheiro de café perfuma a casa de cortinas vermelhas, os olhos da menina sentem prazer em seus seios pela primeira vez, a formiguinha carrega uma nesga de hortelã cortada da horta, as nuvens passeiam gordas e bonachonas pelo céu, a areia esgueira-se pelos dedos do pé, e, em tudo isso, Te observo, Te toco, Te amo. Porque Tu estás dentro de mim! Pois somos um, Santo Espírito. Pela carne Tu operas, e na carne Tu habitas!

Não nos deixe apodrecer, Deus. Perdoa-nos por expurgarmos o Santo Nome, e barrá-Lo à porta do baile. E que nós, crentes, sintamos novamente o frescor do Teu hálito que estremece nosso corpo, arrepia nossa pele, e nos faz amar outros embrulhos de carne chamados seres humanos.

Assopre, Sopro Divino, mas de onde nunca deveríamos ter Te tirado – de dentro, do fundo de nossas almas esgotadas.

Espírito Santo de Deus, vem encher este lugar, de Ti.

Marcos de Araújo Oliveira
marcos_birigui@yahoo.com.br