A participação política da juventude metodista no perído da ditadura
Por Anivaldo Padilha
Eu vou falar a partir de uma experiência de juventude evangélica. Vocês vão perceber que as diferenças são pequenas em relação ao exposto pelo Ivo. Às vezes, temos a ilusão de que nós, da igreja, somos muito diferentes das pessoas da sociedade em geral, ou que nós, evangélicos, somos muito diferentes dos católicos e vice-versa. Na verdade, isso não ocorre. Na verdade, nós temos muito em comum; o Ivo já tocou em alguns pontos sobre os quais eu pretendia falar. Eu vou, talvez, menciona-los durante a minha fala só como referência. Mas tem dois aspectos da conjuntura das igrejas – o Ivo mencionou vários da década de 60 – que eu gostaria de acrescentar... eu vou falar aqui a partir dos anos 50 (risos). Pois é, a minha certidão de nascimento é um pouquinho mais antiga do que a dele.
Nos anos 50, em geral, as igrejas, como instituições, estavam totalmente comprometidas com o poder no Brasil. Por um lado, a Igreja Católica Romana, com seu poder institucional, estava completamente vinculada, aliada, aos setores dominantes e muitas vezes não se tinha como identificar ou separar as duas coisas. As igrejas evangélicas, por serem menores, por serem minoria e terem uma mentalidade de minoria, formavam um gueto cultural e religioso no Brasil. Não tinham o mesmo poder institucional da Igreja Católica Romana, não participavam do poder como a Igreja Romana, mas as igrejas evangélicas estavam também, pelo menos ideologicamente, comprometidas com o status quo e viam o capitalismo quase que como algo natural. E como é que éramos nós, os jovens das igrejas evangélicas? Quais eram as nossas características nos anos 50?
Nós tínhamos uma atitude totalmente pietista, quer dizer, era a busca da piedade pessoal e espiritual, e a busca da santificação. Nós éramos totalmente cerrados na busca de uma santidade que nos separava do mundo e de seus problemas. Nosso conceito de santidade era o de separação do mundo e não o conceito bíblico de que ser santo é ser separado para o trabalho de Deus. Nossa vida era inteiramente voltada para o interior da igreja. Nossa espiritualidade significava uma fuga do mundo e não uma busca da verdade evangélica. Nós tínhamos um comportamento bastante - ou totalmente – moralista: ser jovem evangélico era não fumar, não beber, não dançar, não “colar” na escola, enfim, a gente acreditava que era, realmente, totalmente diferente dos outros, que a gente estava fugindo do mundo. Isso significava também não se misturar com os jovens do mundo. Isso era uma característica nossa. Na escola, no trabalho, a tendência era a gente se separar, mostrar que éramos diferentes. Nós tínhamos que dar o testemunho de que nós éramos diferentes e melhores. Isso nos levava, por exemplo, a não participar de nada. Nas escolas, na universidade, a gente não participava de grêmio estudantil, no trabalho não participava de sindicatos nem de greves. No entanto, quando os sindicatos faziam greve por aumento de salários, os evangélicos aceitavam o aumento de salário, apesar de serem contra a greve e de não participarem.
E tínhamos também uma atitude totalmente legalista, ou seja, nós tínhamos que cumprir as leis, quer dizer, evangélico cumpre as leis. Havia uma leitura distorcida do apóstolo Paulo sobre a submissão e aceitação da autoridade e, portanto, nós tínhamos que aceitar toda e qualquer autoridade. A nossa prática diaconal - e isso era muito intenso na nossa vida de jovens, o serviço às comunidades carentes – era totalmente paternalista, quer dizer, nós íamos lá para ajudá-los mas, geralmente, com a intenção implícita de converte-los e não com atitude solidária. Nós íamos fazer as coisas por eles. Era totalmente assistencialista. Nosso trabalho se resumia, quase que exclusivamente, somente na coleta de alimentos e roupas e outras coisas. No inverno era campanha de agasalho. Para nós a pobreza era causada por questões pessoais, por problemas pessoais e morais, individuais.
Ou seja, nós não tínhamos muita consciência de que a pobreza tinha suas raízes, principalmente, na estrutura da social e econômica. E nós víamos também a diaconia, ou o serviço, quase que exclusivamente, ou principalmente, como meio de fazer proselitismo, ou seja, dizia-se “nós vamos levar o alimento material, mas temos que levar o alimento espiritual também”. O chamado alimento espiritual era, através da ajuda material, tentar seduzir as pessoas necessitadas a vir e aderir às nossas igrejas.
No final dos anos 50, começa uma grande reviravolta na nossa vida e também uma efervescência muito grande nas igrejas evangélicas no Brasil. Eu vou mencionar aqui dois fatores, mas tem muito mais. Um deles foi a conjuntura nacional – o Ivo já mencionou tudo o que ocorreu naquela época e eu não vou citar isso – mas nós tivemos a influência, eu diria, de três organizações. Eu vou colocar o nome delas no quadro, não vou falar sobre elas, mas só para vocês se lembrarem, quando vocês quiserem fazer qualquer pesquisa sobre o movimento ecumênico no Brasil, vocês vão ter que ir atrás dessas três organizações: CEB – não é Comunidade Eclesial de Base não – essa sigla se refere à Confederação Evangélica do Brasil; ela foi fundada em 1932. A CEB – Confederação Evangélica do Brasil reunia a maioria das igrejas evangélicas no Brasil e promovia a cooperação entre elas nas áreas de ação social, educação cristã, trabalhos de juventude, e atividades diaconais. Enfim, era uma organização que, realmente, promovia a fraternidade e o trabalho conjunto entre as igrejas evangélicas. Foi a primeira organização ecumênica organizada no Brasil. ULAJE – União Latino-americana de Juventude Ecumênica – foi criada em 1941 e foi a primeira organização ecumênica da América Latina, de nível continental. E a outra, UCEB, significava União Cristã de Estudantes do Brasil, que era a versão brasileira da FUMEC – Federação Universal de Movimentos Estudantis Cristãos. A FUMEC foi a primeira organização ecumênica da história do movimento ecumênico moderno. Ela foi organizada em 1895, com o objetivo de reunir estudantes, principalmente universitários, para dar testemunho no mundo acadêmico. A ULAJE trabalhava, especificamente, com a juventude das igrejas e, basicamente, com os jovens que não estavam estudando e também com os estudantes de ensino médio.
Essas três organizações tiveram uma influência, um papel fundamental nesse despertamento das igrejas evangélicas no Brasil e, principalmente, da juventude. Notem que, das três, duas eram de jovens e compostas de leigos em sua maioria. A CEB, por exemplo, tinha um departamento de juventude e criou, nos anos 50, um setor chamado Setor de Responsabilidade Social da Igreja. É interessante que a Confederação Evangélica, entre 1956 e 61, organizou três conferências que ficaram conhecidas como Conferências do Nordeste. O tema era Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro, quer dizer, foram três conferências para discutir e analisar a situação brasileira, mas a partir da situação do Nordeste. E foi, provavelmente, a primeira vez no Brasil que cristãos e marxistas se encontraram. UJALJE e UCEB também participaram, diretamente, em conjunto com o Departamento de Juventude da Conferência Evangélica. Essas organizações tiveram um papel fundamental, porque começaram a organizar encontros e seminários para a gente discutir, refletir sobre a situação brasileira e desenvolver reflexão teológica. Começamos a ler a Bíblia de outra maneira, não da forma fundamentalista que a gente lia antes e começamos a organizar acampamentos de trabalho em várias regiões do Brasil. Reuníamos os jovens, estudantes ou não, em épocas de férias, e íamos para regiões carentes, para prestar serviço à comunidade. Esse serviço ia desde a construção de casas até, por exemplo, a elaboração de programas de alfabetização de adultos.
Fomos muito inspirados por Paulo Freire e seu método e filosofia revolucionários. Enfim, foi um engajamento total que nos abriu os olhos para o mundo e nos levou a romper as portas das igrejas, dos templos, e compreender que nossa missão era no mundo.Um outro papel importante que essas organizações tiveram para nós foi o de ampliar as nossas relações; primeiro nos ajudaram a romper as portas das igrejas, em segundo lugar, nos ajudaram a romper as fronteiras brasileiras. E aí passamos a ter contato – indireto ou direto, às vezes – com os movimentos de libertação nacional, especialmente da África. Era o momento da luta contra o colonialismo e grande parte dos líderes dos movimentos de libertação da África tinham sido membros da FUMEC, das versões do movimento estudantil cristão na África. Eu me lembro da gente receber carta do Samora Machel (na época líder da Frente de Libertação de Moçambique) e que foi o primeiro presidente de Moçambique; fizemos campanha a favor de Nelson Mandela, porque ele tinha sido membro da versão Sul-Africana da UCEB. Ele tinha sido criado na Igreja Metodista. Passamos a ter contato também os movimentos pelos Direitos Civis dos Estados Unidos. Tudo isso servia de inspiração para nós. E a troca de experiência foi abrindo a nossa mente.
Tivemos também, por meio da FUMEC, contato com as experiências dos cristãos da Europa, durante a II Guerra Mundial. Uma Europa dividida, dominada pelo Nazismo, onde os nacionalismos eram exacerbados, no entanto, os movimentos estudantis cristãos, membros da FUNEC, na Alemanha, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos e outros países, conseguiram manter a unidade, apesar das diferenças nacionais e apesar dos membros desses movimentos em níveis nacionais estarem sendo recrutados para o exército de seus respectivos países. Tudo isso nos serviu de grande inspiração e nos ajudou a crescer e transformar nossa visão de mundo.
Em primeiro lugar, eu diria que percebemos que o nosso assistencialismo, na verdade, era uma distorção do amor evangélico; o nosso moralismo era uma falta de compreensão de uma ética cristã; o nosso legalismo também era uma falta de compreensão sobre a justiça; perdemos, também, a nossa ingenuidade sociológica, ou seja, passamos a entender que a pobreza era resultado de estruturas sociais e econômicas injustas e, portanto, para exercer o nosso testemunho, nós tínhamos que nos engajar na luta por mudanças sociais no Brasil. E aprendemos também que a nossa espiritualidade era nada mais que uma fuga do mundo. Como Jonas, nós estávamos fugindo.
Entendemos que a espiritualidade devia nos levar a um engajamento total na luta pela justiça no Brasil. Exigia de nós também uma encarnação em toda a situação humana. E também descobrimos que o nosso trabalho diaconal tinha que ser profético e ecumênico. E percebemos também que o proselitismo é anti-evangélico, porque Deus não admite proselitismo. Deus oferece a sua graça e as pessoas têm o direito de aceitá-la ou recusá-la. Ninguém é forçado a aceitar a graça de Deus. E percebemos que a evangelização verdadeira era um esforço que nós tínhamos que fazer para trazer ou levar a todos os níveis da relação humana os sinais do Reino Deus.
Bem, a partir desse despertamento, nós nos envolvemos, diretamente, na situação brasileira. Redescobrimos ou descobrimos a nossa vocação política. Então grande parte dos jovens começou a se envolver no movimento estudantil, nos sindicatos e outras associações. Começamos a ter os contatos com os católicos. Foi uma abertura ecumênica que coincidia também com a abertura ecumênica da Igreja Católica, sob influência do Vaticano II.
E começamos a discutir qual devia ser o nosso papel, ou seja, o papel dos cristãos, na revolução brasileira, porque, na verdade, nós acreditávamos que era possível fazer uma revolução no Brasil.
Desenvolveu-se, também, internamente, nas igrejas uma luta pela renovação da Igreja, para que a Igreja avançasse no seu compromisso social. E a partir daí começamos a criar núcleos ecumênicos e evangélicos em váriasregiões do país, para ajudar a ganhar um espaço de reflexão e ajudar os jovens das igrejas a participarem dos movimentos políticos e sociais que estavam ocorrendo no Brasil. Aí nós enfrentamos um problema sério.
É importante lembrar que esse período coincidia com grande polarização ideológica, sob a influência da guerra fria. E falar de pobreza no Brasil era considerado uma atitude subversiva. Ser ecumênico era ser confundido com comunista. As pessoas nos acusavam de ser comunistas, porque nós éramos ecumênicos. Ecumenismo e Comunismo rimavam, não é?O que aconteceu?
Passamos a sofrer forte repressão interna nas igrejas, além de enfrentar a repressão da ditadura. O que ficou claro para nós é que as igrejas que tinham nos incentivado, no final da década de 50, a redescobrir o Brasil, ou a descobrir o Brasil, essas mesmas igrejas e suas lideranças não estavam preparadas para nos acompanhar. Nós ultrapassamos e atropelamos as lideranças. Conseguimos, em muitas igrejas, assumir o controle autônomo dos nossos movimentos de juventude nas igrejas, que antes eram liderados e controlados por clérigos.
Começamos a romper essas correntes, essas amarras, com a organização de núcleos autônomos em várias igrejas e regiões do Brasil, trabalhando de duas formas: uma para incentivar os jovens a participar dos movimentos políticos e sociais, outra para que lutassem também para a renovação da Igreja.Além de enfrentar repressão interna nas igrejas, esse envolvimento levou muitos jovens a sofrer também a repressão da ditadura. Prisão, torturas, assassinatos, desaparecimento foram a constante para muitos jovens da nossa geração, católicos e protestantes e também não cristãos.
Eu só vou dar uma informação para vocês: eu e Eliana fomos presos juntos. Nós fomos presos em São Paulo. Estou dando este testemunho pessoal, porque eu quero mencionar um fato doloroso, mas que é importante ser tornado público. Nós dois fomos presos, logo em seguida mais dois jovens da Igreja Metodista também foram presos.
Fomos denunciados por um membro da igreja. Durante uma das sessões de tortura em que eu estava sendo interrogado, os torturadores queriam me forçar a confessar que eu era comunista. Diante da minha negativa, um interrogador disse: você quer que eu acredite em você ou no Pastor José Sucazas Jr, que te denunciou, dizendo que você é comunista?
O caso desse pastor não foi isolado. O papel das igrejas na repressão foi muito grande, nesse período entre 1964 e início da década de 70. Depois começaram a mudar.
E a experiência de ser evangélico na prisão foi mais ou menos semelhante a ser católico na prisão. A Bíblia era o único livro acessível no período em que estive no DOI-CODI e DEOPS – eles esqueceram que, de acordo com a forma como você a lê, a Bíblia pode ser um livro extremamente subversivo.
Não somente subversivo, a Bíblia nos dava força, eu diria, para resistir às torturas e enfrentar a situação em que estávamos e que era de muita tensão: a gente via um companheiro ser levado para o interrogatório e depois não ouvia falar mais nele. Só depois de alguns dias a gente ficava sabendo que ele estava morto.
Todas as vezes que se ouvia o barulho das dobradiças da porta de ferro que se abria para as celas da Operação Bandeirante do DOI-CODI, todos nos sentíamos ameaçados, porque sabíamos que um de nós ia ser levado. Então a meditação, a oração, tudo isso nos ajudou bastante a superar esses momentos de angústia.
Fonte: http://www.expositorcristao.org.br/index.jsp?conteudo=4025
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