26 setembro, 2008

Salvos do poder do pecado, da morte e do diabo. Ou seja, de toda alternativa que não seja vida boa, abundante, fraterna, criativa e solidária.


Pr. Ronan Boechat de Amorim

Há muitos anos eu li o livro “Mulheres de Médico”, de Frank G. Slaughter, que falava da degeneração das relações pessoais de um grupo de amigos médicos e esposas que viviam boa parte do tempo juntos. O livro descreve como a convivência pode ser degenerativa quando as pessoas que fazem parte de nosso dia a dia e do nosso círculo de intimidade são deliberadamente egoístas, egocêntricas, racistas, sexistas, machistas, manipuladoras, excessivamente competitivas, indiferentes, complexadas, fofoqueiras, oprimidas, mentirosas, traidoras, superficiais, arrogantes, etc... etc... Traições profissionais e no casamento, alcoolismo, violência e outras atitudes acabam se tornando comum ao grupo que se torna um lugar destrutivo com relações perigosas e doentias.

Por que a vida que é um grande milagre precisa ser necessariamente confusa, desarmônica, injusta e, não raras vezes, trágica?

Quando Deus criou o ser humano, era para que este pudesse viver feliz e relacionar-se amorosa e solidariamente com harmonia, justiça e paz com Deus, com os demais seres humanos, com o restante da criação. Isso implicava amor, confiança e obediência a Deus, o Criador e sustentador da Vida e da harmonia entre todas as coisas criadas. Na linguagem bíblica do Gênesis Deus formou o ser humano do pó da terra, deu-lhes o fôlego da vida e disse: vivam, sejam criativos e companheiros, amem, dando assim cores e sabores, criando assim sentido e história e cultura de vida. Por um dom de Deus o pó fez-se gente para a experiência do amor que vive e da vida que ama.

Mas infelizmente o texto bíblico de Gn 3 nos diz que o ser humano (homem e mulher!) desobedeceram e rebelaram-se contra Deus. Muitos cristãos chamam a esse ato de “pecado original”, que quebrou a harmonia em toda a criação de Deus.

A palavra pecado quer dizer “extraviar-se”, “desviar-se”, “errar o alvo”, “agir sem discernimento”, “errar”, “iniqüidade” (falta de justiça), “impiedade” (falta de temor a Deus)”, “revoltar-se” , “rebelar-se”, etc... Uma outra palavra corrente na bíblia para pecado é a que designa algo “torto”, “curvo” (o contrário do que é reto, certo e justo”. O pecado, portanto, é uma falha, uma violação à Aliança com Deus, com o próximo.

O pecado é sempre uma atitude concomitantemente (ao mesmo tempo) contra Deus, contra o próximo, contra a própria pessoa que peca, contra a Aliança, contra a vida, contra a justiça, contra a harmonia (paz & comunhão) na Criação. O pecado cria desequilíbrio e desarmonia nas pessoas, entre as pessoas e entre as pessoas e todas as demais coisas.

O salário do pecado é a morte (Rm 6:23). Basta olhar ao nosso redor e ver como o pecado humano gerou um mundo injusto, violento, desumano, corrompido. O pecado humano gerou uma cultura injusta, violenta (racista, machista, etc), corrompida. O pecado humano gerou instituições e estruturas injustas, violentas, corrompidas. O pecado humano gerou políticas injustas (escravidão, ditaduras, privilégios para os mais poderosos), violentas (guerras, dominações de outros povos) e corrompidas. O pecado humano gerou relações pessoais, familiares, matrimoniais, inter-pessoais injustas (de dominação e exploração e uso do outro), violentas (assassinatos, roubos, torturas, chantagens, abusos, estupro) e corrompidas.

O pecado é estrutural, institucional, político, cultural, relacional, etc... mas é sobretudo pessoal. Nosso mundo é a soma de tudo o que fazemos, cremos, instituímos, etc... Por isso a “cura” para o pecado precisa ser sobretudo pessoal, para o ser desumano que constrói, mantém e goza de um mundo que tem coisas boas sim, mas que no fundo é um mundo doente, injusto, violento, desumano. Nosso mundo foi construído à nossa imagem e semelhança de seres desumanos.

A história humana é a história das guerras, das dominações, das violências, da versão dos vencedores, dos mais fortes, dos mais poderosos...

Deus através de Jesus vem nos oferecer a cura para o coração humano, para as relações humanas, para as relações com o restante da Criação, para a relação com Deus. A graça de Deus não cura apenas parte dos relacionamentos doentios, não cura apenas alguns sintomas e manifestações de nossa desumanização... é a cura para o coração, para os sentimentos, para os desejos, para o trabalho, para os sonhos, para os medos, para os desvios...

É a reconstrução das relações em amor, solidariedade, justiça.

Mas não há como isso acontecer se a vida não voltar ao seu centro e a nossa história não voltar ao seu rumo. Voltar à Deus.

E voltar a Deus não significa o retorno à uma teocracia, a uma “igrejacracia”, a um “cristianismocracia”, a uma “religiosicracia”. Mas significa retornar ao que Deus é, ou seja, amor, justiça, verdade, misericórdia, paz, bondade, perdão, etc...

O pecado que é desobediência a Deus é a rebelião, o desvio, a falha, contra o amor, justiça, verdade, misericórdia, paz, bondade, perdão.

“Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3:23). A Bíblia afirma que todas as pessoas são contraditórias, ambíguas, pecadoras. Não são pecadoras porque pecam, mas pecam porque são pecadoras! Mas a Bíblia também afirma que o poder de Jesus nos livra do poder do pecado, ou seja, do domínio do pecado sobre minhas ações e minha vida (Rm 6:14). Assim, quem tem Jesus como Senhor e Salvador, não vive de forma deliberada no pecado. O pecado é mais um erro, sintoma da nossa debilidade e ambigüidade humanas, da nossa necessidade de Deus, do que uma opção. “Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço”, confessa o apóstolo Paulo em Rm 7:19. Daí a necessidade de vigiar e orar para não cair na tentação de pecar intencionalmente (Mt 26:41) ou viver deliberadamente no pecado. “...Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar” (1Co 10:13).

Se o pecado fosse uma goteira, Jesus seria o guarda-chuva e a santidade o compromisso de não nos deixar molhar. Molhar acidentalmente por uma goteira é uma coisa. Viver molhado é outra. O injusto ou iníquo é o que deliberadamente pratica a injustiça, o pecado, o mal. O mal é uma opção. É uma alternativa ao amor e à vontade de Deus.

Há pessoas que lucram e “se dão bem” com a prática do pecado. Mas a Bíblia nos diz que o salário do pecado é a morte (Rm 6:23). São as nossas iniqüidades que fazem separação entre nós e nosso Deus (Is 59:2).

O justo é também, como já mencionamos, uma pessoa imperfeita, ambígua e contraditória. Mas é uma pessoa que faz a opção de assumir suas contradições, de enfrentar, sanar, superar as suas contradições. Alguém que sob a poderosa mão de Deus busca a perfeição cristã. Ele sabe que é pó, frágil, pecador... confessa isso continuamente... e busca o auxilio de Deus para crescer, amadurecer, amar, santificar-se. Quando a gente pensa que é melhor do que realmente é, a gente se ilude, se arroga de ser o que ou quem não se é, e cai.

Se há um Deus amoroso que trabalha para redimir a humanidade e a vida, há também uma força negativa e diabólica que veio para matar, roubar e destruir (João 10:10). Preocupado com seus irmãos na fé, o apóstolo Paulo escreve aos cristãos da cidade de Tessalônica: “Foi por isso que, já não me sendo possível continuar esperando, mandei indagar o estado da vossa fé, temendo que o Tentador vos provasse, e se tornasse inútil o nosso labor” (1 Ts 3:5). Há uma força ruim e destrutiva que está no mundo e nas pessoas. A força do tánatos, da morte... que procura sufocar e rebelar-se como o amor e a paz.

O Evangelho é o anúncio do amor redentor de Deus. O amor de Deus nos salva de vivermos uma vida sem amor e harmonia para a qual não fomos vocacionados (chamados)!

O Evangelho é o convite pra gente viver, viver em paz, viver e gostar de viver, viver e gostar de tudo e de todos que vivem, viver e fazer os outros viverem essa mesma vida de amor e humanidade.

Nosso Deus abomina o pecado, mas ama o pecador. Nós devemos seguir o exemplo e a ordem clara de Deus: abominar o pecado e amar e cuidar do pecador.

“Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de brandura; e guarda-te para que não sejas também tentado” (Gl 6:1).

A Igreja, portanto, não tem de pregar a si mesma nem a sua doutrina. Mas unicamente a Jesus Cristo, que veio para que tenhamos vida e vida em abundância. A Igreja não pode reduzir-se apenas uma instituição, a um gueto religioso, a um grupo de seguidores dessa ou daquela doutrina. A Igreja é a comunidade dos que cultivam a fé em Jesus, que experimentam pela fé a presença e o amor e o poder de Jesus em suas vidas. A Igreja é a comunidade dos amigos de Jesus que O adoram, amando e cuidando do próximo, e sentindo-se desafiados para viver a vida de um jeito ético, misericordioso, com fome e sede de justiça, com alegria por estar vivos e com paixão, respeito e admiração por todos e por tudo que vive. A Igreja é esse movimento maravilhoso onde os crentes em Jesus se reúnem solidariamente para viver, para promover a vida, para defender as pessoas e fauna e flora que têm a existência ameaçada e a vida reduzida a mera sobrevivência ou a qualquer outra coisa que não seja vida abundante com promessa de eternidade.

Somos a família daqueles que têm fé em Jesus. Somos aqueles a quem Jesus, pela nossa fé em Sua Palavra, nos chamou (vocacionou) para sermos parte de sua família; uma família includente aonde, dia a dia, o Senhor vai acrescentando os que vão sendo salvos do poder do pecado, da morte e do diabo. Ou seja, de toda alternativa que não seja vida boa, abundante, fraterna, criativa e solidária.

Ainda que exista muitas possibilidades para se entender o que cada uma dessas palavras significa e o que juntas querem dizer, o melhor da vida é viver e ser feliz.