30 setembro, 2006

Pão é amor entre estranhos

Por: Nancy Cardoso Pereira

"Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.Pão é amor entre estranhos."

(A Repartição dos Pães, Clarice Lispector)


Nesta véspera de eleição coloco diante de mim meus motivos políticos. Conheço os índices, estudei os programas, ouvi os discursos... mas prometi pra mim mesma e para a companheirada com quem eu aprendo a luta que não vou me deixar levar pelo voto útil.

Os motivos nossos não se concretizam na limitação do voto e na fé na representação política liberal.

Sempre dissemos - mesmo quando deixamos de ouvir a história! - que a organização popular é começo, meio e fim de um novo começo, que a revolução é permanente, que a luta de classes é feia porque é luta e bela porque inevitável, que @s trabalhador@s são mais que o partido. Qualquer.

Meu motivo político é fome zero não como ternura ou paixão piedosa de um programa compensatório. Pra mim o Pão é amor entre estranhos (desculpa, Clarice...). Temos de dar conta de uma organização social que garanta o pão como chão onde nós todos avançamos... mesmo entre estranhos, mas não desiguais! Pão feito fruto da terra coberta de seres vivos e sua existência: reforma agrária, agroecologia, meu prazer que entende o seu, a vida! Solene abundância.

A tarefa diante de nós e comer com a honestidade de quem não engana o que come: negar os atravessadores entre a boca e o pão, os que enriquecem desonestamente enganando processos de gestão do pão, desonestos no orçamento do pão, nas trocas objetivas e subjetivas de fazer o pão e distribuir o pão. Fazem o povo comer o nome... mas negam o pão. Fazem o povo fazer o pão... e negam o pão! Enfrentar a mídia, o capital e as elites como exercício fundamental de defender a existência que já existe.

A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. A mesa da maioria, a política da maioria que vale a terra em que vive, a colheita que entrega, a comida que come, a fome que zera. Ninguém precisa da bondade, da ternura, da piedade de ninguém: aquilo tudo pertence. Materialismo rude, feliz e austero: Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é.

O Pão é amor entre estranhos porque filho da terra - do trabalho - da saúde - da segurança alimentar - da educação - do prazer. Organizar assim a sociedade para que ninguém fique com fome é garantir estruturas de participação direta, mecanismos efetivos de distribuição da riqueza, preservação de territórios, preservação de diferenças mas não desigualdades. Estranhos alimentados.

O governo Lula disse o nome... mas ainda não serviu a mesa! Quem serve a mesa é o povo organizado.

Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa. (Clarice Lispector)

Ninguém fala em nome de ninguém nessa eleição ! Cada um\uma fala no seu nome prórpio, sua fome própria: a fome de sua classe. Sem nenhum sonho, à altura da vida possível. Porque um outro mundo é possível.

Eu vou votar contra o PSDB, as elites e os interesses do capital estrangeiro.
Eu vou votar contra a burocracia partidária (?) e estatal.
Eu vou votar no Lula sem saudade alguma, sem uma palavra de amor.
Meu voto não é útil porque um segundo mandato de um governo Lula vai me encontrar mais forte junto aos movimentos sociais, na defesa dos direitos conquistados e por conquistar!
Meu voto não é útil porque existe vida inteligente e organizada para além dele.
Eu não quero formar a vida e a luta: já existem como um chão onde nós todos avançamos.
Venceremos!

Nancy Cardoso Pereira
pastora metodista
coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra
51 8124 1096 Porto Alegre