Mundo - Cristianismo de libertação (VIII): o fundamento das nossas lutas
Por Jung Mo Sung *
Adital - Todos grandes movimentos sociais ou políticos atuam em nome de certos valores e promessas. A sociedade capitalista-liberal moderna ocidental surgiu, contra a sociedade medieval, com a promessa de acabar com três tipos de mortes: a) a morte causada pela fome, com a promessa de crescimento ilimitado da produção econômica; b) a morte causada pela doença, com a promessa do avanço sem limites das ciências biomédicas; c) e a causada pela violência, com a implantação da civilização baseada na lei e na democracia. É em nome destas promessas que os países ocidentais capitalistas expandiram o capitalismo pelo mundo, primeiro através da colonização da América, da África, Oceania e da Ásia, e depois através da imposição do mercado global. A fé no mercado é a grande propulsora deste movimento, que transformou o mundo, criou novas elites que se beneficiaram do processo e causou também sofrimentos e opressões pelo mundo afora.
Os movimentos marxista-socialistas dos séculos XIX e XX lutaram em nome da "lei da história", que inexoravelmente levaria a humanidade do capitalismo para o socialismo e depois ao comunismo, entendido como o Reino da Liberdade, uma sociedade sem as opressões do homem sobre o homem e da natureza sobre o homem. Na medida em que se entendia que a "revolução" era inevitável por causa das contradições internas do capitalismo e das "leis da história", estes movimentos se viam como a "vanguarda" que iriam apressar o desdobrar das "etapas" já pré-estabelecidas da história. A derrocada do bloco socialista e o retorno da Alemanha comunista ao capitalismo quebraram ou abalaram profundamente esta fé na "lei da história" e no marxismo como "a ciência da história". Esta fé que era a fonte da energia e força deste movimento.
Diante do atual mundo sob hegemonia econômica e cultural do capitalismo global, setores mais conservadores do cristianismo e, em particular, da Igreja Católica propõem novos caminhos para superar esta sociedade considerada demasiadamente hedonista, individualista e materialista. O eixo central da proposta do Vaticano consiste em defender a doutrina tradicional (não tão tradicional, porque só tem algumas centenas de anos; enquanto que o cristianismo tem dois mil anos) da Igreja Católica como a solução para os graves problemas do mundo. Por isso, a sua insistência na ortodoxia, no rigor das leis morais e disciplinares da Igreja e na sacralidade da Igreja Católica.
Os neoliberais fazem da fé no mercado o fundamento das suas ações e políticas e a fonte de justificativa para todos os tipos de sacrifícios impostos sobre os mais pobres e sobre o meio ambiente. Os marxistas "ortodoxos" faziam da fé nas "leis da história" a razão e a fonte de legitimidade para suas lutas e também para opressões e exigência de sacrifícios no bloco socialista. E os setores mais influentes do Vaticano fazem da fé na doutrina e na lei da Igreja Católica o fundamento e a fonte de legitimidade para suas ações e políticas no interior da igreja e também das propostas para o mundo.
No interior do cristianismo de libertação, podemos encontrar dois tipos de fundamento. O primeiro é a certeza de que Deus nos chama a construirmos o Reino de Deus e que o poder de Deus, que está ao lado dos pobres, seria a garantia que os pobres darão conta desta construção. Para alguns teólogos, afirmar que os pobres e as vítimas das opressões se libertarão e construirão o R.D. no interior da história é afirmar que Jesus não morreu em vão e que Deus não fracassou na sua criação. Isto é, se não conseguirmos construir o R.D. em plenitude no interior da história, isto significaria dizer que Deus fracassou com a sua criação. Mas, como isto não é admissível, a construção do RD e a libertação plena dos pobres estariam garantidas.
Por mais que surjam reflexões teológicas no interior do cristianismo da libertação que mostram a necessidade de revisarmos esta posição, por mais que os acontecimentos da vida e os últimos dois mil anos de história questionem, este grupo sente a necessidade de reafirmar estas doutrinas incansavelmente - algumas vezes usando novas linguagens ou metáforas para dizer o mesmo-, pois o fundamento, o sentido e a fonte de energia para suas lutas se encontram na certeza deste discurso teológico.
Um outro grupo encontra o fundamento da sua luta, não na teologia, mas na experiência de encontrar no rosto do pobre a presença de Cristo e ouvir no clamor dos pobres a revelação/juízo de Deus sobre o pecado do mundo. Clamor este que nos interpela a lutarmos por um mundo mais humano, a passarmos do mero conhecimento, consciência, para coragem e ação. A teologia da libertação, nas suas mais variadas formas, veio depois desta experiência-práxis, como um serviço à compreensão desta experiência espiritual e à luta dos pobres e das vítimas das opressões. Para este grupo, o fundamento do cristianismo de libertação, a fonte da força e do sentido, está nesta experiência espiritual, mesmo que as vitórias não sejam como desejamos, mesmo que não tenhamos a certeza da vitória final e plena.
É um cristianismo que desconfia das certezas teológico-sociais (seja do neoliberalismo, do marxismo, do Vaticano ou até mesmo do cristianismo da libertação), pois certezas sobre seres humanos, a história e Deus indicam que estamos diante do fenômeno da idolatria. Certezas nos propiciam falsas seguranças e nos levam a erros trágicos. Por isso, o cristianismo sempre ensinou que o fundamental é a fé, apostar a nossa vida, no Deus que permanece entre nós e realiza o seu Amor nas nossas lutas com e em favor dos pobres e das pessoas que sofrem (cf 1Jo 4,12).
Lutamos porque os rostos das pessoas que sofrem injustiças nos interpelam, porque sentimos dentro de nós mesmos uma força que nos impele, porque a luta nos torna mais humanos, porque sorrisos e olhos das pessoas com que caminhamos juntos nestas lutas dão sentido às nossas vidas e as enchem de graça e, com tudo isso, nos permite viver a "plenitude possível" do Reino de Deus, da presença do Amor de Deus, nas nossas vidas e na nossa história.
(Este é o oitavo artigo de uma série que estou escrevendo sobre o tema do "cristianismo de libertação" como uma contribuição para os debates em vista da V Conferência do CELAM)
* Professor de pós-grad. em Ciências da Religião da Univ. Metodista de S. Paulo e autor de Sementes de esperança: a fé em um mundo em crise
Leia também:
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Cristianismo de Libertação (VI): o papa e a família
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Cristianismo de Libertação (IV): os três níveis do discurso teológico-social
Cristianismo de Libertação (III): duas frentes de luta
Cristianismo de Libertação (II): os pobres e a liberdade-libertação
Cristianismo de libertação (I)
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