22 outubro, 2008

Construir culturas de paz (Ivoni Richter Reimer)



1. Gostosas Faíscas

Saborear a sexualidade sem complexo algum. Fartar-se com o cotidiano pão com todo o prazer do mundo. Curtir o movimento de ruas, estradas e becos sem temer e desconfiar de ninguém. Humanizar o trânsito e transitar pela vida sem medo de ser feliz. Realizar-se no trabalho e no lazer sem gastar energias lutando por salário e descanso. Gostar de estar em casa e saber que o paraíso existe. Absorver a (in)finita beleza do mundo e refleti-la nos olhos de quem encontramos nos caminhos.

Estas são algumas das faíscas de sonhos mesclados com a realidade que tantas vezes é pesadelo, mas também são faíscas de realidades vivenciadas em meio aos pesadelos reais.

São estas algumas faíscas de paz almejada e vivida, mas são também faíscas que denunciam a falta de paz.

Afinal, esta palavra “paz” está na boca de todo o mundo. E de tantas bocas que tem, corre o risco de ficar desbocada, esvaziada, desdentada, sem sabor, desnuda de significado.


2. Danada confusão

Em todo lugar, organizações estão falando ou começam a falar de “construir uma cultura da paz” para combater violência e miséria. Governos, ONG’s, escolas, igrejas... Isto é bom. Mas não basta falar de paz; é preciso ver a proposta e a ideologia que está na sua base! Os terrorismos exigem medidas que instalem “paz”, a violência das guerras, dos morros, das gangues exigem medidas para promover a “paz” na região; a morte por desnutrição, o desemprego concorrido exigem medidas para garantir a “paz”; o nervosismo do mercado precisa ser apaziguado... E no meio de tanta “paz” apregoada, saem faíscas de morte e retaliações pra tudo que é lado!

Mas que “paz” é esta que está na boca de todo mundo, e o mundo continua sedento de paz? E que “cultura” é esta no meio de tanta confusão de “curtura”?
Está certo que discutir conceitos não resolve muito e que é necessário discutir os projetos político-culturais que propugnam e se dispõem a defender a “paz”.1 No entanto, também é certa a necessidade de ter clareza sobre o conceito afirmado dentro de um ou de outro projeto. Se ambas as coisas não andam juntas, corremos o risco de continuar saboreando o pão marcado pela injustiça, e de estar em casa sabendo que o inferno existe!


3. Gostoso discernimento

Estas nossas faíscas propõem recordar algumas afirmações bíblicas básicas sobre paz que identificam projetos de Deus em meio às diversidades histórico-culturais. Elas nos confrontam com a realidade e conosco que participamos destes projetos.

Em primeiro lugar, cultura basicamente é o jeito como organizamos nossa maneira de pensar e viver, nosso espaço, nosso jeito de amar, brigar, trabalhar, de nos relacionarmos com outras pessoas, grupos e povos... Cultura se faz. Por isso, é diversificada e é transformável. Também as relações de poder são fruto cultural, fazem parte da cultura e por isso podem ser modificadas. Aliás, prefiro falar de culturas! Porque cada pessoa, grupo, povo vai desenvolvendo e refazendo seu próprio jeito... Respeito, diálogo e solidariedade entre as culturas enriquece o nosso jeito de pensar e viver, de nos transformarmos, de participarmos de processos de construção de culturas de paz.

Em segundo lugar, vamos analisar brevemente o conceito “paz”. É difícil traduzir o termo shalom, usado no Primeiro Testamento, simplesmente como “paz”. Em primeira instância, shalom é dádiva de Deus, significa vida íntegra, plena, gostosa em todos os sentidos. O Salmo 85 é um hino que enfoca toda a miséria humana, dentro da qual, porém, se vivencia o shalom de Deus, que tem a ver com a sua misericórdia e salvação, com justiça, verdade, graça e prazer: “Verdadeiramente... Deus fala de salvação a seu povo para que a felicidade habite em nossa terra... para que a bondade e a fidelidade se encontrem, justiça e paz se beijem!”.

Esse shalom, no entanto, não é graça barata. Deus espera resposta igualmente benéfica de quem o recebe. Profetas chamarão isto de fidelidade e obediência. Quem recebe shalom deve semeá-lo por onde anda, compartilhá-lo, reivindicá-lo. O shalom não é dom estático, mas dinâmico e transformador. Faz parte da cultura, que também é dinâmica. Assim como culturas de guerra e violência deixam marcas históricas e psicossociais em muitas gerações, também culturas de paz podem deixar suas marcas positivas. É por isso que Isaías 48,18 relê, no exílio, a história do povo de Deus: “Ah! Se tivesses dado ouvidos aos meus mandamentos! Então a tua paz seria como um rio, e a tua justiça como as ondas do mar!” O shalom de Deus está intimamente ligado com a vivência da
Torá, que visa o bem-estar pessoal e social de cada pessoa.

Assim, a dádiva de Deus e a nossa resposta-compromisso andam de mãos dadas, abraçadas, gozando de felicidade. Quando uma larga da outra, instala-se o caos, a injustiça, toda forma de violência, perda de sentido, portanto, ausência de shalom!

Para a literatura e a espiritualidade rabínicas, o shalom é parte integrante da bênção de Deus. Essa bênção é vivida no cotidiano, de forma que quem a recebe deve ser bênção para as outras pessoas. Assim, para os rabinos torna-se relevante que cada pessoa assuma o compromisso de “fazer shalom”. Esta é uma novidade que vai aparecer também em Jesus. A interpretação rabínica do shalom de Deus coloca-se dinamicamente como fazendo parte desta dádiva de Deus. Já antes de Jesus, portanto, e também rabinos contemporâneos de Jesus conclamavam o povo a ser “fazedor de paz”/“pacificador”, estabelecendo relações de dignidade e justiça entre as pessoas, e entre a pessoa e Deus. Essa função “pacificadora” testemunha a participação no Projeto de Deus.

Nesse sentido também o Segundo Testamento utiliza o termo eiréne como um completo bem-estar, como vivência de salvação. Jesus demonstra isso quando acolhe, cura e resgata a dignidade das pessoas (Mc 5,34; Lc 7,50). Também o apóstolo Paulo usa o termo neste sentido de bem-estar integral nas suas saudações (veja, p. ex., 1Cor 1,3). O desejo de paz, no entanto, deve ser acompanhado de gestos e ações condizentes (Tg 2,16). Por isso, quem vivencia a paz de Deus deve tornar-se alguém que “faz paz” (Mt 5,9; Tg 3,18).

Em termos bíblicos, paz abrange toda a dimensão humana na sua relação psicopessoal, espiritual, sociocultural e político-econômica. A realidade de shalom/eiréne está em oposição a toda proposta que cria e sustenta mecanismos de morte, gerados a partir de sistemas de dominação e exploração. Não há situação de paz sem a experiência da justiça, da vida-com-sentido e da restauração da dignidade humana!

Esta paz é incômoda para projetos antagônicos ao Reino de Deus. No tempo de Jesus, imperava o sistema da “paz romana”: o império impunha sua paz e suas condições de vencedor a povos conquistados através de guerra e subjugados com escravidão e dependência. Esta “paz” era mantida economicamente através de impostos e taxações que os povos vencidos tinham que pagar a Roma e a seus funcionários. A postura e as palavras de Jesus incomodavam os vencedores e seus representantes ou seus compactuantes, muitas vezes alojados dentro da própria família patriarcal (veja Mc 12,13-17; Mt 10,34-39).


4. Danada semelhança

Esta situação não mudou muito até hoje, apesar dos avanços tecnológicos de diferentes sistemas de dominação político-econômica. Sabemos de vários sistemas que criam situações de guerra para apregoar e para impor a sua “paz”, gerando novas situações de violência, morte e abandono de milhares de crianças, de mulheres e de homens. A paz que vem de Deus e que constrói relações a partir e junto com Deus questiona esses sistemas. A paz que Deus quer é simultaneamente dádiva divina e fruto do nosso trabalhar em e pela justiça (Mt 20,1-16). Se é assim, então violência, exploração e miséria não podem ser aumentadas através de “estratégias e lutas pela paz”.

O sistema neoliberal globalizado dá continuidade “avançada” àquilo que acontecia no Império Romano. Percebendo isto é que várias organizações falam em construir uma cultura da paz para combater todas as formas de violência, entre elas a injustiça e a guerra. Mas é preciso tomar cuidado para que esse discurso não acabe sendo parte do discurso oficial, sem que haja uma transformação na proposta política oficial!


5. Necessárias atitudes...

Para tanto é necessário dar continuidade, em nível local e em nível internacional, ao que aconteceu em Soesterberg, na Holanda, em julho de 2002, na Consulta das Igrejas do Oeste Europeu, com representantes de todos os continentes. Claro que as ações e manifestações isoladas continuam sendo importante, mas é chegada a hora de conclamar a Igreja a posicionar-se e agir politicamente. Em Soesterberg, as igrejas afirmaram a incompatibilidade do sistema econômico neoliberal com a concepção de comunhão e de solidariedade cristãs; além disso, as igrejas se dispuseram a fiscalizar e denunciar mais firmemente as políticas financeiras de seus países, que lesam critérios éticos, sociais e ecológicos.

Afirmou-se unanimemente a necessidade de “se opor às forças destruidoras da globalização econômica e de engajar-se para uma justiça social que contemple o mundo todo”2 . Necessário, afinal, se faz optar entre “Deus e o Mamon/dinheiro” (Mt 6,24).


6. ... e Faíscas

Pensar e agir local e globalmente à luz da paz que vem de Deus é viabilizar e construir processos culturais que colocam a vida digna, justa e prazerosa como prioridade. Participar disto é afirmar a nossa construção de identidade participante de projetos de Deus em nosso cotidiano. E fazemos isso saboreando o pão em festa, mesmo com lágrimas nos olhos; fartando-nos com a beleza divina, encarando a feiúra existente; curtindo a sexualidade em paz, sabendo que o desamor e a violência continuam machucando... Afinal, o paraíso existe ali onde há serpentes, deliciosas maçãs, árvores do conhecimento e pessoas como nós!

Notas
1- Veja livreto organizado por Roberto ZWETSCH. Política – Participação Popular na Construção da Justiça e da Paz. Subsídio de Formação Sócio-Política. Porto Alegre: Gráfica La Salle, 2002.
2- Traduzido do alemão de http://www.lutheranworld.org, Lutherische Welt-Information, 12 de julho 2002, p. 2.