04 janeiro, 2008

Epifania do Senhor - Ano "A"

Isaías 60,1-6 – Levanta-te e resplandece, ó Jerusalém.
Salmo 72,1-7;10-14 – O Rei prometido governará com justiça.
Efésios 3,1-12 – Todos os povos compartilham a mesma herança de Cristo.
Mateus 2,1-12: Alguns magos do oriente prostram-se diante de Jesus

EPIFANIA SEM LOUVAÇÃO GOSPEL INTERESSEIRA

Era motivado o Culto Cristão, no 1o. século, pela reunião eucarística, a comunhão da Ceia do Senhor. Todos os domingos! E era só isso, ao que tudo indica. A páscoa cristã, como tempo litúrgico, a partir do 2o. século, tem tudo a ver com o calendário judaico, se bem que muitos gostariam de esquecer esse fato, incluindo o abandono do AT histórico-profético (falando-se de liturgia, e não da moralidade farisaica, que dá ibope nas igrejas, e tem voto favorável de muitos cristãos, hoje, apesar da luta de Jesus e dos apóstolos, porque recusaram a “reta doutrina” do judaísmo formativo; para esses, parece que Jesus e os apóstolos não foram “bons cristãos”, desse ponto de vista).

Apesar disso, a festa da Epifania é a grande convoca­ção que Deus faz a fim de que todas as nações e raças encontrem forças para tornar humano e fraterno o nosso mundo. Essa é, enfim, a expectativa de Deus que transparece em toda a Bíblia. Mas é em Jesus que ela toma corpo e forma, aparecendo como proposta oferecida a todos. Contudo, a ganância e o desejo de poder – presentes no herodes do tempo de Jesus e nos herodes de todos os tempos – tentam sufocar essa esperança. Porém, os homens de boa vontade têm uma “estrela”, não cessam de “sonhar” um caminho alternativo, o Evangelho real não espiritualizado e moralista que não passa pelas vias dos religiosos pietistas ou puritanos; não nasce da massa comandada nos mega-templos sob a batuta dos pastores empresários que tomaram a igreja evangélica. Emerge, certamente, do menino-pastor nascido numa estrebaria infecta, que equivale, hoje, à criança que só por milagre não foi jogada na lagoa da Pampulha, nem num rio-esgoto de Sta.Luzia, periferia de Belo Horizonte. Essa caminhada é cheia de dificuldades, mas é Deus quem a ilumina, gerando forças e vida nova.

O complexo calendário litúrgico às vezes nos prega peças. Vamos falar de infidelidades? Duas considerações: Começamos com o Advento (todos sabemos que o Natal, originalmente, era uma festa pagã adaptada ao Cristianismo!), quatro domingos antes do Natal. Observavava-se o Advento comemorado durante 40 dias, e não 4 semanas, como praticamos agora, sem referências ao dito Natal, instituído 2 ou 3 séculos após a natalidade do Senhor. Historicamente, a primeira “festa” litúrgica instituída foi o domingo pascal, kyriake’emera, Dia do Senhor. O domingo constantiniano, instituído talvez em 324, pode ter sido a “sabatização” do domingo. Agora, o Dia do Descanso, para os cristãos de poucas décadas atrás, deixou de ser, na “era do lazer”, um dia de culto. Neste tempo, torna-se o dia do Louvor. Em muitas igrejas, os “louvoristas” fazem a sua parte, cantam, deixam o culto, e vão cantar noutro lugar. Quem sabe nos bares gospel abertos por evangélicos nos lugares de diversão noturna, a pretexto de levar um “evangelho evangélico” à vida noturna da cidade.

Por sinal, o “culto diversão” ganha espaço com rapidez. A cultura gospel apresenta-se com uma teologia e espiritualidade egocêntrica, individualista (os animadores incansáveis dirigem-se sempre “ao meu Deus”); afirma-se guerra e vitória certa, que descarta a possibilidade do sofrimento com causa; de fracasso, que parte da cruz de cada dia que integra a caminhada cristã (no entanto, louvoristas são liberados para usar piercing, tatuagens, scar, enquanto são impedidos de ostentar a cruz de Cristo... ); uma teologia centrada no sucesso pessoal do crente, em formas abstratas exibidas ostensivamente; troca-se a fé bíblica no Deus que sofre e convida ao sofrimento com causa (cada um tome a sua cruz e siga-me...), aparentemente “derrotado” pelos poderes do Mal. Não há interesse pela ressurreição (notadamente nas propostas para as ressurreições paulinas: acabar com o homem velho e adotar, em Cristo, a vida no Primogênito da nova criação...), trocada pelo “exemplo da prosperidade”, saúde emocional e física, curas espirituais, e principalmente sucesso financeiro ou profissional; troca-se, também, o kyrie eleison (Senhor, tem piedade de nós!...) por expressões como: “eu posso, eu alcanço vitória com o “Deus da vitória”, por “meus” méritos, por “minha” vida consagrada e “meu” esforço de santidade. Idéia contrária às teses da Reforma Protestante, sobre a Graça e Justificação pela fé, no Cristo de Deus tão somente. Adota-se uma teologia que acentua a arrogância espiritual, que cobra favores do Alto em troca de “vida consagrada” e “santidade interesseira”. Incompreensivelmente, porém, diante do exemplo de humildade do Senhor louvado e adorado em “espírito e em verdade” no culto cristão verdadeiro. O anedotário sobre pastores e louvoristas que “ordenam Deus a fazer e a abençoar”, etc., através do louvor e da adoração desta era evangelical, vai se tornando volumoso. Os jovens dirigem o Louvor imitando-os...

É um culto onde há desprezo à comunidade e à coletividade (através de aparelhos de som possantes, microfones nas mãos dos dirigentes que “comandam” o louvor como a um espetáculo televisionado, anjos com câmeras digitais de última geração, o povo orientado no data show (que faz o papel do teleprompt). E nem precisava, pois a gente humilde das igrejas faz isso há séculos. Com o orgulho quebrado pelos pastores autoritários (“que ordenam bênçãos ao seu deus: - agora vocês baixem a cabeça, e orem!...”), o povo, passivamente, faz o papel da “claque” de auditório. Afirmando-se o individualismo oprimido que adotam os adeptos do culto gospel, ignora-se a gente da comunidade humilhada, normalmente trabalhando com dificuldades de toda ordem;os irmãos empobrecidos, doentes, desempregados, deficientes, idosos desassistidos, murchos, talvez “porque não alcançam vitória pelo louvor...”, porque incapacitada de apresentar os sinais de prosperidade anunciados desde os púlpitos de acrílico copiados da Tv, como ter uma “vida consagrada”, se os crentes pobres não têm como ofertar e comprar as bênçãos? Mesmo quando classificadas como graça barata, que o culto gospel proclama com alarde e volume alto nas caixas sua mensagem de prosperidade. Enquanto isso o povo permanece frustrado... quer cantar e cantam por ele... quer orar, e os louvoristas fazem sua vez. E sobe a temperatura emocional, no templo... não há lugar para a leitura bíblica ou a pregação edificante. Os louvoristas têm a “palavra”, repetida insistentemente, como se fosse a Palavra de Deus, substitutiva, devidamente ensaiada para o momento. E quando termina a louvação os crentes voltam para a dura realidade e as frustrações do dia-a-dia. Mas domingo que vem tem mais. Aleluia!

Em sua teologia egocêntrica, emocional, intimista, falta a ênfase na evangelização cheia, integral, destinada a todos, ação na sociedade, de denúncia, efetividade ética, compromisso cristão na exigência de políticas públicas, de cidadania, dignidade social para todos, enquanto omite-se o Evangelho bíblico da Graça, da misericórdia divina, xáris e hesed, a compaixão de Deus que alcança o homem e a mulher vitimados por desigualdades e opressões espirituais e materiais, pressionados pelos sistemas de pensar alienantes em relação à realidade humana, constantes num mundo impiedoso e sem fé no reinado de Deus. Por desconsiderar as necessidades dos pobres e oprimidos, que se confrontam com poderes injustos, desigualdades sociais; por adotar a ganância ensinada desde a sociedade civil e agora enfatizada nas “igrejas com propósito”. Mas não se pergunta pra que tanto dinheiro e ofertas especiais solicitadas: que propósito, além de arrecadar fundos financeiros, senão para alguém se dar bem? Para quê se precisa tanto, senão para locupletar pastores exibicionistas que moram em condomínios caros, andam em carros de luxo importados, acompanhados por “ministros de segurança” desde os aeroportos com jatinhos particulares, ou fretados? Por quê os executivos do mercado religioso atual têm que ser modelos para os nossos jovens seminaristas ou jovens ministros? Estes executivos religiosos que, quando pegos pelas polícias alfandegárias e presos, passam a “mártires da igreja” milionária. Se é assim, precisaremos ensinar aos mesmos como contrabandear divisas, lesar o fisco, e cortar as páginas de suas Bíblias para nelas transportar dólares contrabandeados. Sem dúvida, uma evolução quanto ao que se ensinava aos andrajosos pastores da Igreja inicial, que iam, a mando do Mestre, apenas com sandálias e embornais transportando água e pão, pelas estradas da Palestina, dormindo nos cantos que se lhes dessem, levando o Evangelho do Reino...

É egocêntrica, a adoração interesseira que prepara a coleta (arrecadação!), porque trata com indiferença a teologia profética contida no Antigo e no Novo Testamentos (preferem uma interpretação literal da Bíblia, em citações sem contexto, convenientemente ao que pretendem...), esquecida nas aclamações de louvor sem causa, e no conteúdo das mensagens dos animadores e avivados do popularíssimo culto gospel (papel dos chamados novos “levitas”). É uma teologia sem cuidado sobre a vida cristã, por ignorar deliberadamente a essência do ministério de Jesus baseada na misericórdia, no despojamento, na disposição para a vida de cruz, enfrentando o sofrimento com causa ensinado no Evangelho; na gratuidade divina. É uma teologia sobre as possibilidades “salvadoras” da “vida de santidade” intimista, sem compromisso social; “vida consagrada” em “ministrações” de louvor abstrato, distanciado das realidades que a salvação pode e deve atingir. Não há lugar para Deus nesse culto, se Ele for o Deus humilde, despojado, esvaziado de poder, dos evangelhos. A palavra-chave é “Deus da vitória”. Além do mais, o culto cristão verdadeiro é um perigo para esses adoradores: o Espírito poderia aparecer e inspirar os crentes a um verdadeiro encontro com Deus... Então, poderiam ouvir Mateus, nosso evangelista, citando o profeta: "misericórdia quero e não sacrifício” [xáris, no NT; hesed no AT]. (Mateus, 9:13; 12:7; Oséias (6:6), enquanto criticava o culto propositista e interesseiro que ameaçava a espiritualidade da comunidade mateusina.

Isaías 60,1-6: O texto refere-se à cidade de Jerusalém, embora seu nome não seja mencionado. A situação da cidade é desanimadora. Estamos no perío­do do pós-exílio babilônico, onde tudo está para ser feito. Se o exílio era amargo, a saída dele e a reconstrução do país foram marcadas por grandes dificuldades. Jerusalém está prostrada por causa de sua população diminuta (como nas pequenas igrejas, não alcançadas pelas extravagantes eclesiologias importadas!), pela falta de recursos e
pela dominação estrangeira (o império persa, agora, sucede ao babílônio, do tempo de Jeremias, Ezequias, desde 598 a.C.), que não permite a organização política dos que retornaram, além de lhes impor pesado tributo. Teria Yahweh abandonado seu povo e a cidade santa?

Mateus 2,1-12: O capítulo 2 de Mateus quer mostrar a missão de Jesus, mestre da justiça. Essa missão se concentra na salvação dos pagãos, aqui representados pelos “magos”. Mas, uma análise detalhada da perícope de hoje nos mostra um verdadeiro drama: - que é o próprio drama das pessoas e da história, no esforço contínuo de se posicionar a favor ou contra Jesus, aceitando ou rejeitando a salvação que ele oferece. O texto tem partes: (vv. 1-5 e vv. 7-12.0 v. 6) que são uma mistura de duas citações bíblicas, funciona como eixo em torno do qual se movem as duas partes. A segunda parte do texto de hoje (vv.7-12) mostra a coerência com a nova forma de entender o mundo. Guiados pela estrela (vv. 9.10; note-se que ela só reaparece “depois que se afastaram de Herodes e de Jerusalém”, centros do poder), chegam a Belém e encontram o menino (vv.9.11). Nesse “menino da periferia” reconhecem o Rei que faz justiça, e se prostram diante dele. De fato, os magos vêem "o menino" (v.11), prostram-se e oferecem tributos. A expressão “o menino e a mãe” faz pensar nos reis de Judá, quase sempre apresentados com sua “mãe” no dia da entronização.

Os magos reconhecem, pois, a nova maneira de exercer a realeza e o poder: com compaixão, misericórdia, cuidado social e solidariedade. Aderem ao reinado de Deus, convertem e participam das intenções que salvam as pessoas a partir do pequeno (Jesus de Nazaré, o menino!), e do pobre, sem poder, sem influência política, na primeira e importante liturgia da Epifania. Não a partir dos poderosos e violentos infanto-exterminadores como Herodes, apoiado pelos sacerdotes religiosos. O v. 6 - posto na boca dos chefes dos sacerdotes e dos doutores da Lei - reúne dois textos bíblicos: Mq 5,1 e 5,2, situando Jerusalém o nascimento do rei dos judeus, e caracterizando a afinidade desse rei: ele é um “chefe que apascentará o povo de Israel”. O verdadeiro tipo de adorador é aquele que, no meio da sociedade conflitiva, ímpia, descobre que a salvação não pode vir pela ação violenta de um poderoso político, nem pela falsa religião, louvação vazia, interesseira, dos religiosos serviçais do prepotente Herodes (estes mal sabendo que já substituíram o objeto de adoração e louvor da tradição bíblica pela reverência ao poder político-econômico). A salvação vem através do pequeno na periferia de Jerusalém, como muitos dos menininhos marginalizados de nossas cidades. Os magos são os primeiros a intuir isso, e seu desejo é o de adorar esse “novo poder” que nasce do pobre para transformar o mundo (vv. 2.11). Eles são guiados por uma “estrela” (vv.2.7.9.10), que exprime as intuições mais puras e os anseios mais profundos da humanidade seden­ta de paz, de justiça social e jurídica, de solidariedade e fraternidade. Herodes, os chefes dos sacerdotes e os doutores da Lei, são religiosos, têm sua bíblia. Por meio delas sabem onde nascerá a espe­rança do povo. Sacerdotes, ministros, governantes, em sua ambição e ganância de dominação e febre de poder procuram ardilosamente eliminá-la, como o rei Saul pretendera, no passado, eliminar Davi (cf. lSm 18,11). Sendo possível, feliz ano novo!

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Derval Dasilio
Pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil
Coordenador: rev.Ricardo César Vasconcelos
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