O anseio do Reino de Deus
“Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”
(Mt 5:5-6)
A terceira e a quarta bem-aventuranças de Mateus são semelhantes em conteúdo e mensagem. Os que choram (os aflitos) são aqueles que, movidos por intenso anseio da vinda do Reino, sofrem e se afligem por isso (Não esqueçamos que Mateus trata de atitudes humanas. A aflição e o sofrimento como condição humana, como um mal, era o tema de Lucas).
Essa atitude, como graça e exigência de Jesus, coincide com a atitude dos que “têm fome e sede de justiça” – ou seja, também um intenso anseio do Reino (pois trata-se da justiça que o Reino de Deus traz consigo). Jesus refere-se assim à justiça segundo a tradição bíblica, que encerra um sentido mais amplo e profundo do que o da simples justiça social nos diversos níveis das relações humanas. Na linguagem bíblica, “justiça” inclui também as justiças históricas e sociais, mesmo sem se referir especificamente a elas.
Na Bíblia (e evidentemente na bem-aventurança), “justiça” (e “justo”) significa objetivamente o resultado da concretização paulatina do Reino de Cristo. Como exigência para o discípulo, significa acolhida e fidelidade a esse Reino e suas exigências, expressas em Jesus Cristo. Em termos de espiritualidade cristã, “justiça” é santidade e “justo” é ser santo. Mais adiante Mateus fala da mesma idéia na boca de Jesus: ¨Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5:20); “Buscai em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas as coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6:33) – mais uma vez “justiça” refere-se ao Reino e às exigências de fidelidade a ele (a santidade).
A justiça e a santidade do Reino, como graça e exigência, começam pela conversão dos corações e a transformação das pessoas, caminhando rumo à plenitude do amor e da liberdade em Cristo. Essa libertação interior expulsa o egoísmo e as servidões da cegueira e do pecado. Foi assim que Jesus nos ensinou: “O Reino de Deus começa dentro de nós”; “devemos renascer para uma vida nova”; “quem perde a sua vida (de injustiça e pecado) a encontra (transformada segundo o Reino)”; “o grão de trigo deve perecer (egoísmo) para dar fruto (de santidade)”...
Mas a santidade e a justiça do Reino também têm uma dimensão social: todas as realidades humanas devem ser redimidas e santificadas “para que Deus seja tudo em todos”. Cristo veio e entregou sua vida para que os valores do Reino impregnem não só os indivíduos, mas também a família, a economia, a cultura, a política e todas as relações sociais. Essa afirmação já constitui um lugar comum no ensinamento da Igreja, mas adquire uma relevância especial onde a sociedade é escandalosamente injusta e distante dos ideais do Reino e da santidade.
Quanto mais forte for o pecado social e mais fraca a influência da lei de Cristo na sociedade, tanto mais a justiça bíblica evocará e privilegiará a justiça social. Nesse caso (como é o povo da América Latina), a aflição e a fome e sede do Reino que Jesus pede a seus seguidores assumirão uma forte tônica de justiça social, de libertação dos pobres e oprimidos e de exigência de luta por uma sociedade melhor (mais fiel aos valores do Reino, mais santa).
É nessa bem-aventurança que se encontra a raiz e o sentido daquilo em que a Igreja tem insistido tanto: que a construção do Reino de Deus é inseparável do esforço pela justiça e que a santidade cristã exige o serviço ao pobre e o compromisso com sua libertação integral.
A promessa que acompanha essa bem-aventurança é significativa: aqueles que dela participam serão consolados e saciados. O Reino virá, para eles e para os outros, na medida do seu intenso anseio da vinda do Reino. Só encontramos Deus na medida em que o desejamos; da mesma forma, o Reino só se constrói na medida em que desejamos eficazmente a sua vinda. O caminho de toda santidade começa pelo desejo de ser santo. A justiça social avança na medida em que haja homens que a desejem ardente e eficazmente.
Isso tudo nos revela que a santidade, os valores do Reino, a libertação e a justiça no mundo nos são dados em forma de promessa. Trata-se de um dom de Deus, uma graça. Não são apenas o resultado do esforço e do compromisso dos homens, por mais eficazes e bem-intencionados que sejam. O Reino e sua santidade representam a eclosão do amor gratuito de Deus na história; suas exigências e valores superam as possibilidades da condição humana. A justiça bíblica nos é oferecida como graça porque, para Jesus, o homem é mais do que o homem. E a graça deve ser desejada, pedida e acolhida no espírito das bem-aventuranças.
A EVANGELIZAÇÃO, OBRA DO ESPÍRITO
Essa bem-aventurança nos fornece três ensinamentos essenciais no que se refere à Missão; ensinamentos que comportam outras tantas exigências de espiritualidade, necessárias para que nossa evangelização seja cristã.
1 – Toda evangelização deve conduzir ao crescimento na justiça (santidade) entre os homens. Sua meta é sempre a conversão (o mais explicitamente possível) a Jesus Cristo e seu Evangelho. A vocação do homem é uma vocação para a santidade. Assim, evangelizar é gerar justos, que por seu turno desejarão intensamente que a justiça se propague.
Essa dimensão é insubstituível na Missão e na comunidade que a realiza, pois ninguém pode dar o que não tem. É bem verdade que a evangelização é uma tarefa complexa, que deve cobrir etapas e às vezes um longo itinerário antes de propor o núcleo de sua mensagem religiosa. Também é verdade que as libertações históricas, a solidariedade e a justiça, como o crescimento dos valores culturais, são aspectos inseparáveis do Reino e da evangelização. Contribuem para o Reino e a evangelização, mas por si sós não são o Reino e não constituem o elemento específico da evangelização. Esta se dá quando Cristo é aceito e seguido – e os homens são transformados, a partir do seu interior, de pecadores em justos e de egoístas em filhos de Deus e irmãos dos outros homens.
2 – Em sua dimensão mais profunda, a evangelização é obra do Espírito de Deus. É a graça gratuita de Deus Pai, que por amor quer transformar o mundo pecador e injusto em imagem do seu Reino. Mesmo quando bem inspirados e comprometidos, os homens são incapazes de tal tarefa. Nenhuma atividade humana pode construir o Reino e sua justiça. Somente Jesus pode nos trazer o Reino – Jesus que é o amor encarnado e salvador de Deus. Jesus, que faz possível que o Reino e sua justiça venham através de sua vida, morte e ressurreição.
A evangelização é obra de Deus, que enviou o seu Filho. E essa obra continua na Igreja, indissoluvelmente unida à Missão de Jesus graças ao Espírito que dele recebeu. É o Espírito que está na Igreja quem, em última instância, converte e constrói o Reino, fazendo “novas todas as coisas” e trazendo a justiça aos corações e às sociedades. Se, por um lado, o homem entregue a si mesmo é incapaz de evangelizar, por outro ele sabe que o resultado de sua missão vai muito além de seus limites e do constatável. Aquilo que o Espírito realiza na evangelização supera os meios de ação da Igreja e dos evangelizadores.
A mensagem da bem-aventurança é uma mensagem de confiança e esperança na eficácia da Missão. Duvidar de nossa ação evangelizadora significa duvidar do amor de Jesus e da eficácia do seu Espírito. E aqui, mais uma vez, Jesus é novamente modelo da bem-aventurança: ninguém como ele demonstra tanta aflição e fome e sede da vinda da justiça do Reino entre nós. Nossos anseios e desejos e justiça nada são em comparação com os anseios e desejos da vinda do Reino que consumiam Jesus – e que hoje operam na Igreja por meio de seu Espírito.
Evangelizar é identificar-se com o ardente anseio de justiça do Jesus bem-aventurado e evangelizador, é entregar-se ao movimento missionário do seu Espírito. No entanto, com a humilde convicção de que o Espírito tem caminhos que não são os nossos, soprando onde e quando ele quer (Jo 3:8).
3 – A mística da evangelização é uma síntese de atitudes em tensão: anseio ardente, consciência dos próprios limites e impotência, confiante esperança. Se forem autênticas, essas atitudes farão brotar a oração.
E a oração é uma necessidade da Igreja missionária: é o reconhecimento prático de nossa impotência para evangelizar e de nossa convicção de que a Missão não é apenas a utilização dos meios de ação, mas sobretudo a obra do Espírito que opera em nós.
Orar é abrir-se para o Deus que preenche nossas limitações, é deixar-se invadir por sua justiça para construir justiça nos outros, é colaborar com a obra libertadora do Espírito, que age na raiz das consciências, chegando onde os meios de ação não podem chegar.
A oração do evangelizador é a resposta cristã ao fato de que o Reino da justiça é um dom de Deus, devendo portanto ser desejado e pedido. É a resposta ao fato de que aquele que trabalha pela justiça do Reino deve viver ele próprio a justiça. É a resposta ao fato de que toda justiça e santidade provêm de Deus e devem ser recebidas como graça. Maranatha! “Venha o teu Reino!”
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Texto de Segundo Galilea, extraído das págs. 69 a 75 do livro Espiritualidade da Evangelização segundo as bem-aventuranças”, publicado em 1980 pela Edições Paulinas.
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