07 agosto, 2006

Uma reflexão

Por: Marcos Araújo de Oliveira

"Tal é o instinto do amor que não quer perecer: quando tiram-lhe a terra em que se fixa, quando seu céu familiar é destruído, inventa um outro céu e uma outra terra. É o momento em que o ser que não é mais amado murmura a quem não o ama mais: ‘Você não me verá. Não importunarei você. Viverei na sua sombra. Envolverei você com uma proteção da qual não terá consciência’". (Genetrix, François Mauriac)

Não quero falar sobre Concílio Geral. Há tantos outros, de palavras simples e descaprichadas, que agora o louvam como o conclave histórico da Igreja. Continuem, portanto, a celebrar. Não os impeço. Fizeram-me, aliás, um grande favor; demonstraram por A + D que a instituição apodrece junto com as carnes. Espírito Santo de coleiras; carnes empalhadas.

Negar, porém, que meu coração palpitou forte, de medo, seria desonestidade. Chorei. Os olhos, exangues, jorraram o pus da ferida da alma. Dentro do peito, um gato. Que arranhou, unhou desesperado as paredes que o refreavam. Na garganta gritos, soluços. Debruços, a Igreja, tombada, virada.

Foi uma mãozinha que conforto me trouxe. Seus andrajos me revestiram, seus calos me acariciaram, sua sujeira me limpou. E eis a história da mãozinha e de uma certa árvore. Maior, bem maior que minhas preocupações ecumênicas e episcopais.

Aconteceu em Piracicaba. Um pequeno embrulho de carne pousou a mãozinha sobre meu ombro e perguntou para onde eu olhava.

- To olhando pra uma árvore - disse.
- Que árvore? - perguntou a mãozinha. Aquela verde ali?
- Não - respondi. Uma que só se pode ver de olhos fechados.
- Não to vendo nada.
- É porque seus olhos ainda estão abertos.
- Ah... Pronto, fechei!
- Agora pense na cor que você mais gosta.
- Rosa!
- Então a árvore será rosa! E pense nas pessoas que você ama, e elas aparecerão bem do ladinho da árvore.
- Quando eu vou ver, hein?!
- Quando você menos esperar.

Era uma invencionice minha, admito. Serviria para distrair a criança, mantê-la ocupada com algo imaginário. Aquela vidinha com tantos nadas passaria a ter um algo com que se preocupar: enxergar, de olhos fechados, uma árvore rosa.

Passaram-se dias e semanas, passou-se um Concílio Geral. As feridas abertas, ao sol. Corpos estirados após um bombardeio. Da boca de um amigo, brota:

- Marcos, uma menina do projeto pediu pra te dizer que ela viu a árvore.
- Viu?
- É. Falou que fechou os olhos e enxergou a árvore rosa. Ela estava voltando da Igreja...
Estou de olhos fechados. Bem fechados. Não quero ver concílios e conclaves, martírios e conchavos. Estou de ouvidos tapados. Bem tapados. Não quero ouvir clamores e orações, rumores e perdições. Penso apenas na mãozinha, em sua árvore. Rosa! Quem estará sob seus galhos? Um pai bêbado que agora se transforma em herói de braços fortes que elevam a criança ao ar? A mãe, antes puta, que agora disputa, dando piruetas de bailarina, a atenção da filhinha?

Penso em minha própria árvore. Ela é azul. Tem raízes grossas e profundas que não se contentam com a imensidão de terra à sua disposição e se arremessam para fora de seu chão, fazendo-se de banquinhos. As folhas farfalham, deixam o sol penetrar, criam imagens mosaicas ao pé do tronco. E os galhos! Tantos, ramificados, alongados, espichados. Num campo descampado está minha árvore, e ela é azul.

Olhem só, mas olhem bem, cheguem-se pertinho! Coloquei um balanço para vocês brincarem! Sim, você aí de turbante e olhar sólido, pode vir que eu te empurro. Você também, de kipá e cabeça baixa, não se acabrunhe: o balanço também é pra você. E os dois dividem a mesma tábua, se sentam coladinhos, pois o balanço é pequeno. Como gargalham esses dois! Como riem! As barbas de um esvoaçam no ar, e o turbante cai, e o kipá também, e eu os jogo fora, pois no ar, agora, as duas cabeças são livres, alegres e infantis!

Debaixo de minha árvore, e ela é azul, chega uma senhorazinha de braços rechonchudos. Tão gordinhos! As mãos pequenas, daquelas que servem chá ao final do culto. Com a senhorazinha chegam também meninos e meninas, de aleluias e glórias nas bocas, braços rijos estendidos ao céu; e homens sérios e sisudos, homens das leis: eu digo venham, sentem-se nas raízes da árvore azul, contemplem os dois ao balanço!

Os galhos chacoalham, o Vento Sopra. Caem batinas e paletós do topo da árvore! O sol desvirginiza as folhas, as formiguinhas se arremessam do tronco. Festa na árvore, na árvore azul.

O dia se esvai, o sol baixa, no céu as nuvens se revestem de nácar. Mas ninguém quer ir embora. Minha árvore já não é mais minha, e sim nossa. Abraço meus amigos, digo-lhes eu amo vocês. Contemplo minha família, digo-lhes eu perdôo vocês. E bem do lado de nossa árvore azul, uma arvorezinha rosa brota, humilde, sincera. Atrás desta, uma outra verde, e outra preta, e branca. Um lindo jardim, um pomar, vides e laranjeiras. Para todos. De todos. Já ficou a noitinha e ninguém se vai. Os olhos fechados, o coração aberto.

Ainda pensam em Concílio Geral?

Eu não.

Obrigado, mãozinha.

"Eu disse à minh’alma, fica tranqüila, e deixa baixar o escuro sobre ti, pois que aí tudo será treva divina. Como num teatro, as luzes se apagam para a troca de cenários". (Quatro Quartetos, T. S. Eliot)


Marcos de Araújo Oliveira
marcos_birigui@yahoo.com.br

1 Comments:

At agosto 07, 2006, Blogger lisieux said...

Coisa mais linda, além de verdadeira, utopicamente possível.
A minha árvore, irmão, continua verde: Existe sempre em tudo, um nada vestido de verde... verde-esperança!
Abraços
lis

 

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