29 janeiro, 2008

Conservar o Metodismo? Em busca de um genuíno ecumenismo (Dr. José Miguez Bonino)

(Texto de Dr. José Miguez Bonino extraído do V e último capítulo do livreto "Metodismo: releitura latino-americana, publicado em 1983 numa co-edição pela Editora UNIMEP e a Faculdade de Teologia da Igreja Metodista/Editeo a partir de uma série de Conferências proferidas pelo seu autor na Semana Wesleyana em maio de 1882 na Faculdade de Teologia. A tradução do texto é de Adesses Antônio Oliveira Araújo)


O mero anúncio do nome “metodismo” suscita uma série de perguntas difíceis na América Latina: Que significa para um grupo de latino-americanos vincular sua identidade com um momento do desenvolvimento religioso da Inglaterra (e eventualmente dos Estados Unidos)? Como conceber a missão de tal grupo religioso num momento em que a fé cristã – majoritariamente apresentada na América Latina pelo catolicismo – busca em nossos países achar uma práxis e uma articulação especificamente vinculadas a seu contexto? Se há um testemunho “evangélico” (no sentido de relação com a Reforma numa acepção ampla do termo), em que há de contribuir a busca que assinalamos? Que sentido tem retomar uma linha parcial como a do metodismo? Noutras palavras: Que significa “na periferia do mundo” ser parte de uma comunidade religiosa cujos centros, origem e maiorias pertencem ao “centro”? Como entender-se como metodista à luz de Medellín e Puebla? Que sentido tem uma “identidade metodista” no momento em que se constitui o Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI)?

Por outra parte, não há dúvida de que no mundo ecumênico do Atlântico Norte voltam a adquirir impulso os movimentos confessionais (ou “comunhões cristãs mundiais” – World Christian Communions, como se costuma chamá-las). Por uma diversidade de razões que não vamos analisar agora, consolidam-se as estruturas confessionais e se fazem esforços para vinculá-las às “igrejas de ultramar”, como se costumava chamá-las. Trata-se de uma oportunidade ou de uma tentação? Qual é a matriz de nossa consciência cristã de metodistas latino-americanos? É a busca cristã latino-americana? É o protestantismo latino-americano? É o metodismo mundial? Ou, como se relacionam entre si estas diversas instâncias?

Nossa apresentação de hoje não pretende dar uma resposta a estas perguntas. Seguindo a linha que traçamos nestas palestras, procuraremos acercar-nos do tema a partir da história do metodismo inicial, traçar depois a interpretação dessa experiência e concluir com algumas breves observações a respeito da América Latina.


NOSSA HERANÇA ECUMÊNICA

João Wesley e Jorge Whitefield utilizaram praticamente a mesma frase para defender o direito de cada um pregar suas distintas formas de metodismo fora dos limites subscritos pela lei canônica da Igreja da Inglaterra (Anglicana): “Considero o mundo como minha paróquia” (1). Podemos deixar de lado a pergunta de quem cita a quem (nenhum dos dois dá crédito ao outro pela frase). Poderia dizer-se, também, que o tipo de consciência de sua “jurisdição mundial” sugerida pela expressão, insinua em certa medida a atitude de “franco-atirador”, mais própria de um dito sectário que de uma família eclesiástica de bons modos.

O que importa, entretanto, é outra coisa: para o metodismo primitivo o mundo não é primeiramente o lugar onde se movem organizações, mas o lugar da missão, o cenário sobre o qual a Igreja cumpre o mandato de anunciar o Evangelho e chamar homens e mulheres para a conversão. O metodismo não pode esquecer (em relação consigo mesmo como “estrutura” ou “movimento” mundial) qual é o berço de qualquer consciência do mundo que possa adquirir.

Devemos recordar que embora Wesley tenha rechaçado a limitação que lhe impunha a lei canônica, de maneira nenhuma rechaçou a Igreja da Inglaterra. Deu-se conta, entretanto, que o despertar metodista precipitaria uma resposta de sua igreja. Depois de negar qualquer intenção de separar-se dela, comenta: “Cremos, entretanto, que (os metodistas) serão expulsos, ou que levedarão toda a Igreja” (Works, 8, p. 281).

De certa maneira, ocorreram ambas as coisas: o despertar metodista realmente levedou, de distintas maneiras e em medidas diversas, quase todas as igrejas existentes na Grã-Bretanha e mais além, inclusive – as igrejas metodistas atuais são só uns poucos “pães” resultantes desse processo. Mas alguns também foram “expulsos” da Igreja Anglicana. A parte destes resultados históricos, o que se expressa aqui tem que ver com a vocação ecumênica do metodismo. Por sua própria origem, se bem entendemos, a Igreja Metodista não pode considerar-se ilhada, nem perfeita em si mesma, nem desvinculada das demais.

A função original do metodismo não pôde realizar-se plenamente nos termos em que Wesley o concebeu. Hoje está cristalizado numa série de igrejas metodistas. Mas essa mesma história ilustra e dramatiza a ironia e o absurdo da divisão da Igreja. Por causa da sua própria origem, a Igreja Metodista é chamada para a superação de sua separação, para a unidade, não meramente “espiritual”, mas de comunhão, de comunidade, de unidade de missão e de solidariedade total – como sua própria eclesiologia o reclama. Um “confessionalismo” metodista pareceria ser a negação mais flagrante da natureza do movimento original de Wesley – a levedura na massa. Se as igrejas metodistas querem ser conseqüentes consigo mesmas, não poderiam viver de outra maneira que a de buscar constantemente sua integração na Igreja universal.

Nesta busca de catolicidade, Wesley nos assinala algumas direções. A unidade para ele é basicamente missionária: “desejo fazer uma aliança ofensiva e defensiva com todo o soldado de Jesus Cristo. Não só temos uma fé, uma esperança e um Senhor, como estamos diretamente comprometidos com o mesmo combate”.

Em matéria de doutrina, recordamos a distinção de Wesley: unidade naquela doutrina que forma o núcleo da proclamação missionária da Igreja, liberdade no que opera para a edificação da Igreja. A distinção não é totalmente adequada: primeiramente, porque proclamação e edificação não podem distinguir-se tão facilmente, e depois porque a edificação há de ser, tanto quanto a proclamação, realizada na verdade e isso obriga a mesma fidelidade doutrinal em ambas. Entretanto, Wesley não se desinteressa da pureza doutrinal, como às vezes tem sido proclamado. Dão testemunho disso os inflamados conflitos doutrinários em que se meteu em diversas ocasiões. Mas o cortante rechaço de uma posição doutrinária – com respeito à predestinação, por exemplo – não devia ser, segundo ele, obstáculo à comunhão, não somente na igreja mas inclusive , em suas próprias sociedades metodistas. Wesley não é suficientemente claro com respeito aos últimos critérios dessa tolerância. Mas sua consciência do “penúltimo” caráter da doutrina constitui um elemento de importância nas discussões ecumênicas atuais.

Esta revitalização da doutrina corresponde igualmente em Wesley à relação indissolúvel que ele estabelece entre comunhão na Palavra e comunhão no amor. As evidências do caráter cristão de uma pessoa abarcam sempre, para Wesley, três campos: a experiência consciente (a “fé viva”), a doutrina e a vida cristã (a prática ativa do amor). É verdade que a segunda fica um pouco relegada em relação à primeira e à terceira. Mas isto assinala, precisamente, um campo muito importante para a reflexão ecumênica: a comunhão na fé é comunhão na práxis do amor.


AS CONDIÇÕES ECUMÊNICAS

Para tratar de re-interpretar nossa herança ecumênica faz-se necessário traçar certas coordenadas em relação com o espaço teológico, eclesiástico e ecumênico. Teologicamente faz-se necessário reflexionar sobre o tema da unidade tanto em seu sentido local quanto universal. Não se deve entender nem uma nem outra como a preservação ou imposição de uma “totalidade” dada de doutrina, jurisdição ou ordem eclesiástica. A unidade se refere, mais precisamente a essa qualidade da atividade de Cristo na Igreja que a impulsiona para todos e para tudo, ao movimento pluridimensional do Espírito Uno no qual todos somos chamados à novidade de vida direcionada ao todo para o qual ele foi enviado. Esse movimento ocorre na arena da história humana e por conseguinte encontra sua expressão nas condições sempre variáveis e concretas da existência histórica.

A unidade se refere, por outra parte, à busca de integridade e pleno desenvolvimento de sua vida por parte da igreja em cada situação local assim como em toda a oikoumene – toda a terra habitada. Tanto a “encarnação” local como a preocupação universal, a comunhão com a universalidade devem se esforçar por cobrar visibilidade.

Uma Igreja que toma a sério a unidade – que quer ser verdadeiramente “católica”no sentido etimológico do termo – se esforçará para que seu pensamento teológico, sua resposta litúrgica, suas formas institucionais, seu testemunho e sua práxis no mundo reflitam a novidade que o Espírito cria e descobre em cada nova situação, uma vez que levam as marcas identificáveis do Cristo uno. Quer dizer, uma igreja que aspira a ser verdadeiramente “católica” (universal, ecumênica) estará caracterizada pela disposição de seguir a Cristo em seu ministério de paz e justiça em meio a todos os conflitos e antagonismos da história, arriscando as pressões e tensões que tal ministério desperta na vida da Igreja, uma vez que vive a ternura pastoral que vigia a comunhão de todos os membros do Corpo.

Quando olhamos para o âmbito eclesiástico, a própria palavra “metodismo” nos recordará que a História do Cristianismo tem marchado, pelo menos durante os últimos quatro séculos, sobre os trilhos do confessionalismo. A auto-compreensão de tais famílias confessionais constitui um problema muito complexo. Por uma parte, varia não só de uma para outra dessas famílias, mas também dentro da história de cada uma delas. Por outra, nossa situação presente nos conduz a uma grande perplexidade: teologicamente, a existência confessional separada se justificaria somente pela afirmação de que nossa confissão particular incorpora de uma maneira única a compreensão correta do Evangelho e a plenitude da Igreja. Mas na realidade, a maior parte das igrejas (incluindo, em certa medida, a própria Igreja Católica Romana) vacilam muito em expressar sem qualificações tal pretensão.

Em tal situação, pareceria que desembocamos inevitavelmente numa teoria de complementaridade que é sumamente questionável, tanto teológica como praticamente. Segundo tal posição, cada uma das confissões existentes seria uma “parte” ou um “ramo” da Igreja universal que se acharia (e, por conseguinte, não poderia tornar-se visível) na soma total das famílias confessionais.

Tal ponto de vista dificilmente possa se justificar-se em termos do conceito de “igreja” no Novo Testamento (para o qual as “igrejas” não são partes ou seções, mas representação e corporificação plena da Igreja). E é teologicamente inaceitável porque desloca a unidade e a catolicidade da Igreja e mesmo sua existência visível como Igreja – para o âmbito de uma abstração (uma adição conceptual das Igrejas existentes) ou para o futuro (a união esperada). Minimiza as diferenças reais e consequentemente ameaça levar ao “indiferentismo”, o que Pio IX vira e condenara.

É diante desta situação que se tem falado frequentemente “do fim da era confessional” (2). A existência continuada de estruturas confessionais, num momento em que não estamos seguros de sua justificativa, cria uma intranqüilidade e má consciência que, às vezes, se expressa em agressividade e auto-afirmação e outras, numa vacilação e inoperosidade. O problema é particularmente agudo para o metodismo, que nunca teve uma identidade doutrinária confessional bem definida e que tem afirmado quase abertamente a idéia de complementaridade (3).

Nossa história protestante manifesta além disso, outra ambigüidade. As famílias confessionais, na verdade, têm procurado prover a medida de universalidade que as igrejas têm podido realizar em termos de continuidade e conexionalidade histórica e geográfica. Foram os instrumentos de transmissão da tradição doutrinal, ministerial e litúrgica. Obedeceram à vocação missionária e estenderam a família de Deus até os extremos da terra. Ofereceram uma família universal que abriu o horizonte dos grupos locais e lhes deu uma fraternidade mais ampla.

Por outra parte, a honestidade nos obriga a admitir que a “universalidade” das famílias confessionais está impregnada de artificialidade, alienação cultural, sectarismo, dominação e rigidez que impediram ou restringiram a manifestação da “catolicidade local” e forçaram as igrejas a uma existência separada, estreita e raquítica (4).

No plano secular, finalmente apenas é necessário assinalar que a unidade e a catolicidade das igrejas acha expressão sempre nas condições de configurações particulares de fatores sociais, políticos, econômicos e culturais. No caso, vale a pena voltar a recordar como essas condições afetaram a origem e a expansão do metodismo. A marca da Revolução Industrial é claramente visível nos valores e normas e ethos do metodismo inicial como se observa em sua cristalização nas Regras Gerais. Igualmente, a expansão do metodismo na esteira da expansão colonial e econômica britânica e norte-americana, foi naturalmente moldada pelos padrões geográficos e influenciados pelo conjunto das idéias e modelos que acompanharam esses processos históricos. Essa é a matriz do mapa eclesiástico moderno (5).

Poderíamos resumir dizendo que o “metodismo mundial” é uma realização particular do cristianismo, plasmada no padrão confessional protestante, pelas forças do despertar evangélico e pela expansão missionária do século XIX, que por sua vez foram fortemente condicionados pela Revolução Industrial e pela expansão colonial e imperialista da Inglaterra e dos Estados Unidos.


A PROBLEMÁTICA

Devemos aprofundar um pouco a problemática do metodismo, com base nas dimensões teológicas, eclesiásticas e secular que esboçamos nas páginas anteriores. Nosso problema é o de uma igreja confessional numa época ecumênica. Mas não penso aqui só (ou principalmente) no ecumenismo clássico de aproximação ou união de igrejas, mas no fato de que as correntes de teologia, piedade e atitudes éticas se movem independentemente das plataformas confessionais.

Menos abstratamente: os crentes se unem através das fronteiras confessionais e se enfrentam dentro das mesmas. A educação teológica, por outra parte, já não pode ser concebida a não ser como instituições e corpos docentes e estudantis multiconfessionais (ainda que nas instituições confessionais!).

Nasce um “ecumenismo secular” cujo eixo não são as relações das igrejas tradicionais, mas a participação comum nas tarefas de construção da cidade humana. Isto não significa necessariamente que nos movemos, mas significa, antes de mais nada, que as linhas de divisão e de tensão que desdobram a diversidade e pluriformidade da compreensão cristã da fé (e que por sua vez manifestam o mistério do pecado na igreja) não guardam relação com as linhas confessionais.

Nosso problema é como relacionar a pluralidade da fé cristã e como exercer o discernimento da fé que os padrões do mundo do Atlântico Norte dos séculos XVI a XVIII cristalizaram nas famílias confessionais com a nova diversidade e disjuntivas de nossa época. Tal coisa não pode ser uma simples reorganização de velhas ênfases e interpretações em configurações novas, mas a emergência de formas realmente novas que o Espírito cria e desperta.

Temos assinalado o surgimento de tendências “confessionais” que agora se apresentam a nós como a “nova etapa do ecumenismo”. Como responderemos a este convite, como metodistas da América Latina (portanto, do chamado Terceiro Mundo)? Bem sabemos que falar de história universal nesta segunda metade do século XX é falar de um mundo crescentemente unificado e crescentemente dividido. A tecnologia que tem inter-relacionado, comunicado e unificado todas as áreas do mundo e da vida humana tem incrementado o desequilíbrio do poder político, econômico e militar entre o chamado “mundo desenvolvido” e o “terceiro mundo”.

Que significa em tais condições convidar-nos a centrar nossas relações, em estruturas de unidade mundial (organismos confessionais) edificados sobre a base de um centro na Europa Ocidental ou nos Estados Unidos (Nova York, Genebra, Londres, Roma) e que reproduzem modelos seculares?

É perverso ou exagerado pensar que a nova ênfase nas famílias confessionais nascida e impulsionada desde o mundo do Atlântico Norte (e imposta sobre as igrejas do Terceiro Mundo frequentemente com grande emprego de propaganda e recursos) representa o esforço das igrejas desse mundo (por certo muitas vezes inconsciente e bem intencionado) de retomar um poder e uma iniciativa que tiveram que compartilhar em grande medida nos organismos interdenominacionais, onde a presença do Terceiro Mundo se faz sentir solidariamente?

Que poderá representar em cada família confessional, constituída massivamente pelas igrejas dos países de origem da confissão, a problemática de pequenas igrejas “periféricas”?

O tema é sumamente grave e devemos observar sua profundidade quando se fala facilmente de “Igreja Mundial”, de “superar as distâncias culturais, geográficas, idiomáticas” e unir-nos numa “tradição” comum. Como se essa possibilidade fosse simplesmente conseqüência do caráter supostamente “supranacional” de tais igrejas. Quando as igrejas em Zimbalwe e Nicarágua, por exemplo, eram convidadas, em nome da solidariedade cristã com as igrejas da Inglaterra ou dos Estados Unidos, a divorciar -se da luta de seus países contra a escravidão segregacionista ou imperialista imposta ou sustentada por aqueles países, quando se lhes pede que se subtraiam à tensão e paixão que só podem sustentar nessa luta, quando se lhes sugere que a participação em tais movimentos representa uma “ingratidão e até “heresia” – então a “unidade”invocada não é outra coisa que alienação. Os membros dessas igrejas podem muito bem afirmar (muito sinceramente) que “superam” o estreito nacionalismo de seus compatriotas; os cristãos dos países poderosos podem jactar-se de uma “comunhão” “acima” das tensões. – e ambos se enganarão a si mesmos e aos outros, e os demônios da superioridade, a complacência, o ressentimento e a amargura prepararão sua colheita de destruição sob o manto de uma falsa paz.

A verdadeira reconciliação não se alcança ignorando as tensões e os conflitos que destroem a vida e a dignidade humana, mas resolvendo-os no âmbito da realidade, não da ilusão. E isso significa participação na luta. Só igrejas que se sentem inteiramente responsáveis por seus respectivos povos ante o Senhor, na justiça e na paz do Reino podem contribuir para uma verdadeira reconciliação a nível internacional. Creio que é à luz destas considerações que devemos analisar nossa participação nos movimentos confessionais.

Mais especificamente, temos que nos perguntar o que é o metodismo em termos confessionais. Já sugeri que o metodismo tem uma consciência confessional débil em termos doutrinários. Wesley parece ter estado certo ao afirmar: “Não sustentamos uma doutrina particular”. Em que se apóia pois nosso “gênio” confessional? Durante os últimos anos se escutam vozes que sustentam que podemos compensar nossa falta de identidade doutrinal sublinhando nossa organização aparentemente eficiente. Para alguns é o sistema conexional de concílios, para outros o episcopado com poder de nomeação, para outros o ministério itinerante.

O metodismo pode não ter um profundo legado teológico, mas é um movimento estreitamente vinculado e eficiente. Se nisso residisse nossa singularidade, deveríamos confessar-nos particularmente mal equipados para enfrentar a situação que procurei descrever. Significaria que o metodismo está amarrado a um modelo estrutural derivado dos padrões organizacionais da grande indústria e das corporações multinacionais (ou concomitante com eles) – exemplos típicos de estruturas de dominação. Quaisquer que tenham sido os méritos que este sistema possa ter tido no desenvolvimento das igrejas metodistas, parece-me que a unificação desde a cúpula, a cadeia de mando e o princípio de mando de heteronomia que permeiam essas estruturas as desqualificam para uma família eclesiástica mundial em nosso tempo.
Isso não significa uma desqualificação do institucional. Não há dúvida de que a habilidade de institucionalizar sua preocupação missionário de modo eficiente é um fato básico de despertar metodista que tem vigência permanente.Mas creio que o fundamentalismo institucional que insiste na organização como nossa herança distinta, comete uma grave falácia, a saber, confundir uma forma particular de expressão com a profunda instituição que se expressou nela.O coração da eclesiologia de Wesley – creio – é sua vinculação da ênfase na Koinonia dos crentes e a ênfase no caráter missionário de sua vocação. Wesley articulou esta concepção, não tanto num sistema doutrinário como em termos de uma série de estruturas (das que já falamos) que deram expressão visível à sua visão eclesiológica. Parece-me que só uma lealdade ignorante e mal situada insistirá em que estas estruturas particulares são o sacramento sine qua non e infalível do espírito metodista. Ao contrário, nossa tarefa é achar em nossa situação particular, segundo nossas necessidades e possibilidades, as estruturas que melhor expressem e implementem para nossa época a síntese do impulso missionário e a dimensão comunitária da fé.

A herança que nos legou o gênio organizacional de Wesley não é a forma particular de visibilidade que ele construiu mas o impulso para a visibilidade. Se há uma tarefa comum (ela consiste na busca daquelas formas locais e universais de visibilidade que melhor expressem, em nosso mundo pós-confessional dividido e conflitivo) a vocação missionária e comunitária do povo de Deus.


TEMAS PROSSEGUIR

Se o que tentei apresentar tem sentido, nossa missão não é “preservar” mas “repartir” nossa herança metodista. Por conseguinte, temos que encarar nossos esforços como os de um testamenteiro ou executor do testamento (ou executivo?) com sua dupla tarefa: repartir a herança, de modo que ao final do processo à semelhança do testamenteiro, nos tornemos desnecessários, depois de assegurar-nos de que os legítimos herdeiros entraram na plena posse do que lhes corresponde. Os dois aspectos da tarefa devem ser sublinhados. O metodismo de hoje se faria gravemente culpável se guardasse para si o que lhe tem sido dado, ou se o dissipasse irresponsavelmente, ou o deixasse perder. Creio que esta figura (que, certamente, tem limitações de qualquer metáfora) pode ajudar-nos a ver vários temas concretos em nossa situação de metodistas latino-americanos. Temas que só anuncio, como possíveis tarefas a considerar.

Em primeiro lugar, que classe de corpos confessionais necessitamos? Penso particularmente no Conselho de Igrejas Evangélicas Metodistas da América Latina (CIEMAL) e nas comissões ou grupos de trabalho em torno do mesmo. Creio que não há lugar para organizações confessionais permanentes porque o serviço que as denominações ofereceram na preservação da fé e na expansão da missão encontra hoje adequados canais trans-confessionais ou ecumênicos. Mas devemos assegurar-nos que a tradição, o valor e a experiência que o Espírito de Deus criou nas denominações seja preservado nas novas estruturas. Mas não basta dizer que as estruturas denominacionais (neste caso, latino-americanas) que criamos não são permanentes, uma vez que as construímos de tal maneira (com ou sem consciência disso) lhes damos um caráter que as condena à auto-perpetuação.

O que hoje sabemos das características da auto-preservação das burocracias, a inercial das formas institucionais e o expansionismo inerente nos orçamentos deveria levar-nos a tomar as medidas necessárias para nos protegermos contra esses riscos. A precariedade não deve ser meramente proclamada, mas visível nas próprias estruturas e em seu funcionamento. A agência que opera como “testamenteiro” deve ser estabelecida de acordo com sua função: os mecanismos e o impulso para a auto-liquidação devem estar presentes desde o começo. Esses critérios deveriam guiar as decisões com respeito a programas, formas de comunicação e pessoal.

Um segundo tema tem que ver com a melhor forma de garantir que a “herança” seja distribuída, quer dizer, que toda a comunidade cristã latino-americana possa receber o que, como metodistas, tenhamos que contribuir.

Para isso é necessário, ao menos:

A) estimular as igrejas (a nível nacional e local) e facilitar-lhes que articulem e comuniquem sua herança pastoral: a herança a transmitir não é tanto um caudal fixo mas a recepção viva e o exercício diário dessa tradição;

B) utilizar para essa participação da vida e experiência de nossas igrejas todos os meios e canais ecumênicos existentes, realizando com eles e por meio deles quantas tarefas nos sejam possíveis – no nível continental isso significa uma relação constante com o Conselho Latino Americano de Igrejas (CLAI), e a nível nacional ou regional com diversas instâncias interdenominacionais;

C) a necessária tarefa de investigação e de reflexão histórica e doutrinal deve ser fazer, na medida do possível num contexto ecumênico (ainda quando se trate da história e da teologia metodista);

D) quando as circunstâncias (que em nosso continente se dão com freqüência por causa do diferente desenvolvimento de uma consciência ecumênica em distintas igrejas e regiões) nos levem a empreender tarefas ou expressar posições que não achem canais ecumênicos, não devemos vacilar em realizar uma tarefa “pioneira”, mas devemos tomar todas as medidas para deixar aberta a participação de outros, com pleno direito, como co-atores dessas tarefas.

Um terceiro tema muito importante para nós é a relação ecumênica com o Catolicismo Romano. Nossa tradição metodista é particularmente interessante a este respeito, pois ainda que Wesley julgue às vezes com certa dureza o “Romanismo”, mantém um enorme interesse por sua tradição espiritual (por exemplo, os místicos espanhóis) e trata de fazer justiça, em que pese as críticas que lhe dirige, à insistência católica numa participação ativa do homem no encontro salvífico. Para nós, entretanto, a perspectiva de relação deve ser primeiramente “missionária” mais que doutrinária; é o desafio do nosso continente subdesenvolvido, de nossos povos despojados, da defesa ante a violação dos direitos humanos ou ante o avanço de regimes totalitários, é o chamado de um povo que confessa a fé sem encontrar nela, muitas vezes, a inspiração para uma busca ativa da justiça e da solidariedade. Essa é a matriz de nossa relação com o Catolicismo.

Em relação com isto, o Catolicismo latino-americano não se nos mostra como uma totalidade uniforme e unívoca, mas atravessada pelas mesmas tensões e interpelada pelas mesmas visões que nossas igrejas. É em relação com essas situações reais – e não meramente em nível organizacional (ainda que sem desprezar este) – que devemos amarrar nossas relações (6).

Finalmente, devemos referir-nos a um ecumenismo que Wesley não contemplou, mas que está implícito na idéia de “liga ofensiva e defensiva com todo soldado de Jesus Cristo” quando esta é vinculada à missão da igreja como “laboratório do Reino”. Com efeito, os cristãos não estamos sós ou isolados na tarefa de buscar uma vida humana mais livre e plena. Compartilhamos de uma humanidade comum que se concretiza em condições históricas particulares, em projetos e esforços a nível político, social, cultural e econômico. São tais projetos e avanços puramente “seculares” ou têm significado “teológico” em relação com o “propósito universal” de Deus e com a meta escatológica do Reino? Na tradição wesleyana do reconhecimento de uma graça universal, fica aberta a porta para uma compreensão da unidade que – sem eliminar a especificidade da mensagem do Evangelho – nos impele a participar, sem falsas ilusões utópicas mas também sem ceticismo, na empresa humana comum de libertação que é decisiva hoje em nosso continente.

Este ecumenismo que se reúne em torno da luta pelos direitos humanos, pelos direitos dos pobres, por uma vida humana digna, pela auto-determinação dos povos, pelo direito do povo de decidir sobre seu destino – este ecumenismo não substitui a reintegração da família da fé, mas é tão legítimo, cristão e necessário como aquela.

Nós os cristãos nos somamos sem reclamar privilégios, sem pretender cobrar nossos bens por antecipação: somamo-nos tal e como somos, confiados na graça que “envolve e rodeia” a vida da humanidade e de cada homem “desde o princípio” e até à consumação. Como diz um dos hinos wesleyanos:

Para quem Jesus nos convocou?
para anunciarmos que sua graça é para todos,
e reivindicamos o valor de sua paixão
capaz de salvar dez mil mundos...

Ele prometeu atrair toda a humanidade para si,
sentimos sua atração desde o alto,
e anunciamos com Ele a lei da graça
e publicamos o Decreto do Amor

Unimo-nos com todos os nossos amigos
para louvar ao Deus de nossa salvação,
o Deus de amor eterno,
o Deus de graça universal.

(Works, 3, pp. 93 s)







NOTAS

1) John Wesley, Letters, I/285, 20 de março de 1739, cf. Journal de 11 de junho de 1739. George Whitefield, Letters: 10 de novembro de 1739.

2) A expressão foi utilizada pelo teólogo luterano alemão Wolfang Trilhaas, num Congresso Luterano Latino-Americano em Lima (1965). Cf. Ekklesia (Vol. X, 22-23; março/agosto de 1966).

3) A introdução histórica da Discipline of the Methodist Church, por exemplo, fala dessa igreja como “a part of the Church of our Lord”.

4) Quando os luteranos argentinos se dividem em “Missouri”e “Unidos” e os metodistas brasileiros em “livres” e “episcopais” ou os batistas “do Sul” e “do Norte” (dos Estados Unidos) em nossos países, quando a conexionalidade força uma Disciplina totalmente alheia às tradições culturais dos povos da Ásia, África e América Latina, quando uma junta dos Estados Unidos concebe e escreve literatura que (traduzida em diferentes idiomas) se supõe que deitará raízes e nutrirá a fé e a devoção de crianças e jovens do Quênia , Ceilão, Alemanha e Venezuela – quando tudo isto ocorre é evidente que não podemos falar de universidade e sim, da dominação universal de um padrão cultural nacional e lingüístico (Norte-Americano ou Europeu).

5) Já temos assinalado a importância do desenvolvimento missionário na história do metodismo. Não foi somente uma relação indireta e circunstancial entre expansão colonial e missão: o metodismo, através de seus líderes, tomou consciência dessa relação – perdendo, por sua vez, muito da visão crítica que Wesley mesmo havia visto em algumas das manifestações dessa expansão (tráfico de escravos, política colonial na índia, etc). Por isso Watson se felicita pelo fato de que a providência haja permitido que ambos os movimentos – metodismo e expansão colonial - tenham nascido contemporaneamente, de modo que puderam exportar “não só nossas mercadorias, mas também nossos missionários; não só nossos fardos (balas), mas também nossas Bíblias” (citado por Semmel, op. cit. P. 162). Com respeito à expansão americana, o tema tem sido amplamente documentado.

6) Um estudo mais profundo deste tema deveria aprofundar a questão do papel do protestantismo no continente onde a tradição histórica dá ao Catolicismo certas possibilidades e responsabilidades únicas. Como cumprir essa missão sem limitar-nos a “cavalgar” sobre a pastoral católica nem pretender “substituir” sua missão. Para avaliar adequadamente este ponto deveríamos aprofundar também nosso conhecimento e análise da complexa – rica e às vezes contraditória – história e realidade do Catolicismo latino-americano.