07 janeiro, 2008

O DESAFIO DA EVANGELIZAÇÃO: tomar Jesus Cristo como nosso modelo de evangelizador e missionário

O maior desafio que se coloca para a Igreja e para cada cristão é a evangelização, porque ela constitui sua vocação primordial, sua identidade mais profunda. Naturalmente, esse desafio implica em outros. Um é a convergência e a comunhão dos cristãos nessa tarefa. Outro é a fidelidade à verdade (ao conteúdo da evangelização), tal como Cristo a expôs, pois só a verdade nos torna livres – e a evangelização libertadora do homem perderia seu sentido se não a transmitisse integralmente.

Implica também no desafio de evangelizar com base em critérios autenticamente cristãos. Propor esses critérios em cada etapa da história constitui igualmente responsabilidade da Igreja, pois eles são indispensáveis para que a evangelização mantenha a sua verdade e sua identidade, seja libertadora e redentora – em suma, seja “seja cristã”.

Com tais orientações, saberemos estar realizando a ação própria de Jesus que se propaga hoje na Igreja e não qualquer atividade que se possa chamar precipitadamente de “evangelização”.

A evangelização, para ser cristã:
- deve transmitir a Jesus Cristo, Deus Salvador, e levar à adesão e ao seguimento;
- deve ser “encarnada”, ou seja, transformar os homens concretos, com sua história, sua cultura, suas aspirações, sua organização social – em suma, transformar o homem e sua realidade;
- dever ser integralmente libertadora: precisa transformar as pessoas, os grupos humanos, as famílias e as sociedades de egoístas em fraternais, de injustas e pecadoras em justas e conformes o Reino de Deus;
- deve se inspirar no seguimento de Jesus, nosso Modelo inclusive como o Evangelizador, como fonte de uma espiritualidade missionária.

Nós já conhecemos essas orientações e também sabemos usá-las bem na linguagem pastoral. Compreendemos que elas determinam a autenticidade e a credibilidade da evangelização, o seu ser cristão. Mas elas nos colocam angustiantes desafios.
- Como realizar a evangelização?
- Como levar o Evangelho a pessoas obstinadas e submersas em uma sociedade que idolatra o dinheiro, o poder e o prazer?
- Como levar o Reino de Deus a nossas sociedades exploradoras e injustas, a homens egoístas e divididos, a famílias destroçadas, a miseráveis e marginalizados e a minorias insensíveis?
- E um desafio ainda maior: como levar o Evangelho aos vastos setores culturais e ideológicos que consideram a religião desnecessária para a realização do homem, para sustentar sua moral, para trabalhar pela paz e a justiça?
- E mais: como fazê-lo, quando ideologias influentes proclamam a religião não só como inútil, mas também prejudicial à criação de uma sociedade justa e à libertação do homem?

Diante desses duros e complexos desafios, é possível experimentarmos a tentação da impotência e da desesperança. Temos a impressão de que o Reino de Deus sempre retrocede, que pregamos no deserto, que o mal e a injustiça são mais fortes do que o bem e a justiça. Ficamos sem saber como romper a crosta de uma realidade anti-evangélica e redimir tanto egoísmo e tanta exploração. Somos tentados de muitas maneiras a cair no conformismo, na pusilanimidade e na indiferença; a abandonar tudo ou substituir a evangelização por algo parecido com ela, mas que dê resultados imediatos, como o ativismo social, a política do poder, etc.

Por isso tudo, a esperança cristã – inseparável da audácia missionária e da criatividade – constitui o desafio fundamental da evangelização. Uma esperança que está arraigada em realidades que evidenciam a presença do Reino e não em meras utopias. Em fatos que realizam as promessas de Jesus e não em ilusões. Proclamar as razões da esperança é próprio do cristão, da mesma forma que constatar as sementes de esperança no mundo atual, como fruto da evangelização; os oásis de solidariedade e justiça em meio ao egoísmo e à exploração; a defesa da dignidade de cada pessoa em meio aos sectarismos e aos abusos da riqueza, do poder e da sexualidade; a persistência da fé em meio às perseguições; a consagração a Deus em meio aos materialismos; o fracasso das violências na criação de um mundo de paz e das ideologias materialistas (sem Deus) na construção de sociedades justas e fraternas e na libertação do homem (como reedições da torre de Babel no mundo atual).

Por isso, precisamos encarar a evangelização a partir da perspectiva de Jesus e de sua prática evangelizadora. Evangelização é colaborar e seguir a Cristo evangelizador ou então não é nada. A Missão nasce da fé e do amor a Jesus e é motivada pela esperança em sua causa ou então é realmente e apenas uma “missão impossível”.


ESPIRITUALIDADE E MISSÃO
Evangelizar é seguir o Cristo evangelizador e redentor de seus irmãos em uma sociedade pecadora. Como toda forma de seguimento, a evangelização gera uma espiritualidade. A evangelização cristã deve estar animada por uma mística, uma espiritualidade que nos identifique com a missão de Jesus e constitua a sua motivação mais radical dentro de nós. A espiritualidade da Missão é a própria Missão, com seus critérios, atitudes e opções, animados pelo espírito de Jesus. Missão e espiritualidade são elementos coerentes e inseparáveis, como alma e corpo.

Esse enraizamento no seguimento de Jesus é o único fator capaz de criar na evangelização o “dinamismo voltado para a Missão”, do qual a evangelização necessita tão desesperadamente hoje em dia e sem o qual, como já dissemos, não pode ser plenamente cristã.

Por “dinamismo missionário” entendemos que a evangelização deve privilegiar os setores mais necessitados, descristianizados e socialmente periférico. Deve buscar a ovelha perdida com prioridade em relação às noventa e nove fiéis (Lc 15:1ss), deve procurar e salvar o que está perdido (Lc 19:10), deve chamar os doentes e pecadores e não tanto os justos e sadios (Mt 9:12-13). A evangelização deve ir além das fronteiras da Igreja. A tônica missionária deve nos precaver contra uma evangelização que se consuma entre os já convertidos, os praticantes.

Assim, se o caráter missionário é essencial para a evangelização cristã, então ela deve assumir opções. Fazer opções faz parte da espiritualidade e dos critérios cristãos da evangelização, na medida em que são as opções de Cristo.

Mas que opções são essenciais para a evangelização? Que critérios são inseparáveis de seu ser cristão? Que espírito e atitudes deve ter o evangelizador para se identificar com Cristo missionário?

Responder a essas perguntas em nossa vida significa evangelizar como Jesus evangelizou. Fora dele e de sua prática missionária não se pode encontrar uma resposta.


O CRISTO EM QUE CREMOS, QUE SEGUIMOS E QUE TRANSMITIMOS
Aprioristicamente, não se pode saber o que é evangelização, qual é o seu conteúdo, quais seus critérios de ação ou que exigências ela implica para o evangelizador. Só podemos sair da obscuridade quando olhamos, contemplamos e aprendemos com Jesus Cristo seus critérios, orientações e atitudes, tal como o Evangelho nos revela e a fé da Igreja nos transmite.

Nossa fé e nosso conhecimento de Cristo são essenciais e decisivos para a evangelização, já que sua mensagem central gira em torno de Cristo – e o que o evangelizador faz é transmitir a imagem e a idéia de Cristo que ele próprio tem, com os critérios, as orientações e as exigências que elas implicam. E isso nos leva a uma constatação problemática: conforme a imagem de Cristo que o missionário tenha, a evangelização terá ou não implicações sócio-políticas, será ou não socialmente libertadora, exigirá ou não uma mudança pessoal de vida, será ou não missionária e encarnada nas culturas, se vinculará ou não com as esperanças humanas.

Perguntar em que Cristo cremos e que Cristo anunciamos na evangelização significa colocar mais uma vez a questão da relação entre missão e espiritualidade. É impossível evangelizar como Jesus se não seguimos o verdadeiro Jesus.

Seguir o Jesus dos Evangelhos – aí reside o desafio do evangelizador. Para seguir os critérios, as opções e as atitudes de Jesus na evangelização, não temos outro guia senão a fé da Igreja. E essa fé nos remete constantemente ao Evangelho.

Podemos para isso, por exemplo, seguir o ensinamento das bem-aventuranças. Não porque esse seja o único caminho, mas porque nelas encontramos a melhor síntese da espiritualidade cristã e da missão. Ao mesmo tempo, as bem-aventuranças nos revelam a verdadeira face do Jesus evangelizador que queremos seguir e transmitir.

AS BEM-AVENTURANÇAS: EVANGELIZAR COMO JESUS
Já se sabe que o Sermão da Montanha constitui o elemento mais representativo do Evangelho, a sua mensagem central. E que as bem-aventuranças são a síntese do Sermão da Montanha. Elas não só introduzem o célebre discurso de Jesus, como também o resumem: uma boa parte do discurso representa uma elaboração e uma aplicação daquilo que Jesus afirma de modo sumário nas bem-aventuranças.

As bem-aventuranças constituem ao mesmo tempo uma promessa e uma exigência de Jesus aos seus discípulos. A promessa constante de cada bem-aventurança é a dos valores do Reino e a da felicidade que este traz consigo. Mas, como todas as promessas de Jesus, a das bem-aventuranças só alcançará sua plenitude no Reino definitivo e só então a felicidade não terá sombras a empaná-la. No entanto, também como todas as promessas de Jesus, a das bem-aventuranças começa a realizar-se já, aqui e agora, limitadamente, mas como uma verdadeira antecipação do Reino.

Cada bem-aventurança representa igualmente uma exigência de Jesus aos discípulos: é o caminho traçado por Jesus para que eles participem do Reino já agora, façam-se seus seguidores e alcancem a autêntica felicidade. A promessa, o seguimento e a felicidade são fruto das bem-aventuranças e, assim, são inseparáveis.

A mensagem das bem-aventuranças são se dirige a qualquer pessoa, mas especificamente aos discípulos. E não somente a qualquer discípulo, mas àqueles que fazem parte de certa categoria de pessoas (conforme afirma o Evangelho de Lucas) ou que vivem certas atitudes (conforme afirma o Evangelho de Mateus). Contudo, participar das bem-aventuranças de Jesus não significa já estar salvo. Significa que Deus os considera “bem-aventurados”, oferece-lhes e dedica-lhes o Reino e os conclama a seguir por esse caminho. Além disso, promete-lhes a felicidade aqui e no futuro, uma felicidade diferente, que não provém do “mundo” mas sim do seu seguimento.

No entanto, seria insuficiente conceber as bem-aventuras tão somente como um caminho de espiritualidade evangélica. A mensagem das bem-aventuranças são é somente, nem mesmo principalmente, sobre o homem e sua perfeição. Ela é sobretudo uma mensagem sobre Cristo e seu Reino. Ela nos revela como Deus é e não apenas como deve ser o homem. Ensina como é o Reino de Deus e não apenas o que tem de fazer o homem para entrar nesse Reino.

Assim, podemos dizer que as bem-aventuranças aplicam-se em primeiro lugar a Cristo, que Jesus é o único bem-aventurado e que em Jesus as bem-aventuranças não são um código abstrato de espiritualidade, mas sim a expressão de sua experiência do Reino e de sua vida interior. As bem-aventuranças nos revelam a verdadeira fisionomia de Cristo, seus critérios, suas atitudes e seus amores.

Tudo isso faz das bem-aventuranças o guia indispensável da evangelização, fiel à verdade sobre Jesus, fiel à verdade sobre o Reino, fiel à imitação de Cristo evangelizador. As bem-aventuranças nos revelam a evangelização com os olhos de Jesus.

Os evangelhos nos apresentam duas versões das bem-aventuranças: a de Lucas e a de Mateus. Mateus registra oito bem-aventuranças. Lucas apresenta apenas quatro, seguidas porém de quatro “ais”, as maldições, que não são encontradas em Mateus. Isso, entretanto, não constitui a diferença principal entre as duas versões. A diferença é mais profunda e global: os evangelistas referem-se a coisas diferentes e suas bem-aventuranças correspondem a preocupações e propósitos diversos. Aparentemente, os dois evangelistas relatam o mesmo, embora com estilos diferentes e com palavras que ora se parecem, ora são diferentes. Todavia, a verdade é que as duas séries de bem-aventuranças são distintas e irredutíveis em seu conteúdo –à exceção da última série (tanto em Lucas quanto em Mateus), a bem-aventurança da perseguição.

Contudo, as duas versões são coerentes e complementares. Qualquer estudo ou meditação sobre a mensagem das bem-aventuranças tem que abordar a coerência e complementaridade de sua mensagem.

Em síntese, Lucas nos mostra “quem” é bem aventurado, para Cristo e para o seu Reino, destacando certas categorias de pessoas: diz quem é objetivamente bem-aventurado (ou “desventurado”) segundo o Reino, mesmo antes de considerar sua situação moral. Já Mateus nos diz “como” se consegue ser bem-aventurado, assinalando as condições para seguir a Jesus e participar de seu Reino e, portanto, referindo-se a todas as categorias de pessoas.

Tanto Lucas como Mateus, cada qual a partir de seu ponto de vista, nos ensinam, complementando-se, que condições deve ter a evangelização para ser autêntica, crível e cristã. Indicam-nos o caminho para evangelizar como Jesus e nos inculcam os critérios, as opções fundamentais e as atitudes próprias do evangelizador.

As bem-aventuranças de Jesus (“quem” é bem-aventurado segundo a natureza e a orientação do Reino de Deus) nos revelam precisamente as predileções e opções do Reino (que são as de Cristo), indicando-nos, portanto as opções e orientações objetivas da evangelização, como atividade da Igreja que promove o Reino segundo Jesus.

Já as bem-aventuranças de Mateus (“como” as pessoas se tornam bem-aventuradas) colocam-nos as exigências e atitudes que devemos cultivar para imitar Jesus como evangelizador, indicando-nos as atitudes de Jesus, que seus seguidores, também devem ter. Revelando-nos a espiritualidade do evangelizador na linha de Cristo, relacionam-se com a evangelização como testemunho de vida.

Se Lucas nos ajuda a compreender as grandes orientações e opções da Missão, Mateus nos ensina as atitudes próprias da testemunha do Evangelho. E ambas as dimensões têm sua fonte e modelo em Jesus, único bem-aventurado e único evangelizador.

---------------------------------------------------
Texto de Segundo Galilea "adaptado" à uma linguagem mais protestante. O texto foi extraído das páginas 7 a 22 do livro "Espiritualidade da Evangelização segundo as bem-aventuranças", publicado em 1980 pelas Edições Paulinas. O livro está esgotado há uns 10 anos e não foi republicado desde então.