Carta para o bispo Adonias
Por: Jaider Batista da Silva
Rio de Janeiro, 05 de agosto de 2006
Ao Rev. Adonias Pereira do Lago
Pastor e bispo eleito
Assunto: Leitura pragmática de decisões do Concílio Geral
Caro Adonias, passadas quatro luas desde o Concílio Geral, consigo participar do fórum de metodistas sobre o ecumenismo com uma carta dirigida a você. Escolhi esta forma por entender que sua entrevista antes da eleição de bispos e bispa e a sua eleição ao episcopado logo a seguir são centrais para a compreensão de escolhas feitas no Concílio.
Dirijo-me ao Adonias que conheço há vinte anos, antes e depois de exercer o santo ministério (como se prefere denominar o pastorado em muitas regiões de Minas). Como reparto a mensagem com centenas de colegas leigos(as) como eu ou clérigos(as) como você, passo ao testemunho acerca do Adonias que conheço. Receba o meu abraço e o estenda à dona Marta e às crianças.
Conheço um Adonias que não é a ameaça que tem parecido a muita gente na Igreja. Vivemos por um ano juntos, repartindo o mesmo quarto e o mesmo ambiente de estudos e atividades. Eu havia me formado em Jornalismo e estava no último ano de Teologia. Você chegava para complementação de estudos na Teologia por ter estudado no Seminário Batista Independente de Campinas. O convívio com você foi o que de melhor poderia ter me acontecido naquele ano. Desarmados convivemos e do tempo que passamos juntos colhi as melhores impressões. Você não tinha a formação clássica do seu primo Sibelius, meu amigo, mas compensava plenamente isso com a dedicação ao estudo e a convicção do chamado, da vocação. Nunca ouvi de você o que era comum ouvir de outros(as) àquela época, que afirmavam desavergonhadamente que passavam pela Faculdade de Teologia mas que não permitiriam que a FT passasse por eles(as), ou seja, que os(as) influenciasse. Pois, tal profissão de fé no obscurantismo não tive de você em todo o tempo de intenso convívio. Ficou para mim a imagem do moço dedicado no trabalho e estudioso.
Também atesto que sua conduta se pautava pela correção em tudo: mãos limpas, coração puro, até ingênuo. Isso fazia toda a diferença. Curiosamente, não me lembro, e sou não sou de memória curta, de qualquer atitude sua que fosse de intolerância. Pelo contrário, partilhar espaço e tempo comigo, conhecido à época pela radicalidade, era por si exercício de tolerância. Nunca deixamos de partilhar leituras, referências e experiências e em tudo não faltou a caridade, o exercício da mútua compreensão e do mútuo respeito.
Anos depois, ao trabalhar na Amazônia, tive de encaminhar muitos(as) indígenas para tratamento médico ou reuniões em Goiânia. Como pastor da Igreja Central, você e dona Marta os(as) receberam de forma gratuita e compreensiva, encaminhando-os(as) e mantendo-me informado. Lembro-me mais de uma vez da impressão forte que ficava para os(as) Bakairi. Os(as) Baikari são muito musicais e sobre eles(as) o coral da Igreja Central de Goiânia surtia efeito impressionante. Mas, nenhum(a) voltava declarando qualquer tentativa de torná-los "crentes", o que os(as) fazia admirar ainda mais essa Igreja, diferente de todas as outras que contribuíram para desagregá-los(as) e submetê-los(as) à situação de penúria que buscavam superar. Ao final, ficou para mim o Adonias capaz de gestos de compaixão. Penso que é feliz uma Igreja que tem gente com o esse perfil para o episcopado.
Por tal testemunho, você entenderá a minha dificuldade com a sua entrevista pré-eleição ao episcopado. Nela, você declara três males ou defeitos a extirpar na Igreja Metodista: a relação com a Igreja Católica, o liberalismo, os resquícios da teologia da libertação. Se minha fé estivesse pautada pela relação (muito positiva) com você, eu ficaria sem chão. Mas, eu sei em quem tenho crido. Declaro isso, Adonias, porque carrego em mim os três defeitos que você indica:
Sou casado com uma católica, Nádia, com quem constituí família. Ela tem sido generosa comigo. Acompanha-me aos cultos metodistas, mas não deixou o primeiro amor. É de família católica maronita do Líbano, em comunhão com a Igreja de Roma. Nosso casamento foi realizado pelo padre e pelo pastor na Igreja Metodista do Bairro Santa Helena, em Governador Valadares, Minas Gerais. Nossas crianças foram batizadas na mesma comunidade pela pastora e pelo padre juntos. Sou de família inteiramente metodista, desde a minha bisavó. Estamos na quinta geração de metodistas. Por isso, talvez, sou desses(as) metodistas que não vivem a fé de forma defensiva e não se sentem ameaçados(as) por trabalhar nem celebrar com católicos(as). Sei que não sou juiz dos(as) demais e que cabe ao Senhor separar joio do trigo, que felizmente não estão agrupados por igrejas para que não caiamos na tentação de fazer a parte que não nos cabe.- Sou liberal, como você sabe, do "pensar e deixar pensar", da recusa ao controle de consciências, da defesa firme do princípio protestante da livre interpretação das Escrituras. Por ser liberal, não sou cismático e temo que a Igreja Metodista, em vez de humildemente afirmar-se como um ramo da Igreja universal de Nosso Senhor Jesus Cristo, torne-se uma seita, na recusa às demais formas de viver o que Jesus ensinou e que não podemos reduzir à nossa experiência. Jesus é e será sempre maior que nossa experiência pessoal ou de grupo;
- Reconheço a Teologia da Libertação como um benefício ao Cristianismo no nosso continente, como tentativa de se produzir teologia de forma autóctone e de pensar de forma não-colonizada a nossa fé. Vejo como paradoxal a sua proposta na entrevista, de nos afastarmos de Roma e olharmos para Jerusalém e ao mesmo tempo sua condenação à Teologia da Libertação. Olhar para Jerusalém e não para Roma é discurso original da Teologia da Libertação. Se olharmos para Jerusalém, Adonias, teremos de tomar a carta de São Paulo aos(às) Gálatas como ata mais fiel do primeiro Concílio, o de Jerusalém, como nos ensinava o mestre Julio de Sant’anna. No segundo capítulo da carta aos(às) Gálatas o relato do Concílio termina, após expor toda a controvérsia entre Pedro e Paulo, entre os circuncisos e os(as) gentios(as), com um único (!) ponto de compromisso de unidade: "que não nos descuidemos dos pobres". É o que ficou do Concílio de Jerusalém como ponto de unidade da Igreja. É em linhas gerais o alerta que nos fez a Teologia da Libertação.
É a partir dos defeitos que você indica e que reconheço em minha experiência de fé, que me posiciono, pedindo-lhe licença, quanto ao Concílio. Ninguém nasce a favor dos direitos humanos e do ecumenismo: são saltos civilizatórios. Há tempos nosso colégio episcopal abriu mão de educar a Igreja para o ecumenismo. Quem não é educado(a) para os direitos humanos e para o ecumenismo tende a se afirmar apenas na luta por sobrevivência como indivíduo ou grupo. Na última discussão sobre ecumenismo no Colégio Episcopal, se participaríamos da Campanha da Fraternidade sobre a Paz (!), o bispo Adriel ficou sozinho, em defesa da participação. Diante da conduta marcada por hesitação e dubiedade do colégio de bispos(a), não há porquê acusar este concílio. O encaminhamento feito pelo concílio retrata fielmente uma Igreja fragilizada na sua doutrina por descuido do colégio episcopal na sua tarefa de guardião da doutrina, uma Igreja que não exerce com autoridade o seu papel de educadora, de mestra.
Minha geração assistiu a desistência do Colégio Episcopal de educar para o ecumenismo, para a solidariedade e a tolerância. Assistiu o Colégio Episcopal abrir mão do preceito caro a nós de que o ecumenismo não exige reciprocidade. Reciprocidade é coisa de Banco, do mercado financeiro, ou da diplomacia entre Estados. Aprendi quando criança e juvenil na Igreja que somos ecumênicos(as) por obediência ao mandato de Jesus na oração sacerdotal: "que todos sejam um para que o mundo creia", portanto, como condição para a evangelização e não como negação dela como possibilidade e oportunidade. Assistimos nosso colégio episcopal reagindo a documento do Vaticano restritivo ao ecumenismo, no final do papado de João Paulo Segundo, devolvendo na mesma moeda. Tudo ao contrário do que havíamos aprendido. Não somos ecumênicos(as) por causa do papa ou de quem quer que o seja. Somos ecumênicos(as) pelo mandato de Jesus: apesar do papa, apesar de nosso concílio, apesar das conveniências de momento do nosso colégio episcopal.
Fomos nos estreitando e ensaiando passos de seita. Assistimos muitas comunidades trocando a cruz do altar, comum à cristandade, pela cruz da logomarca da Igreja Metodista dos Estados Unidos, aqui adotada. A logomarca que caberia nos papéis, como timbre, nas paredes frontais como identificação, nas faixas e anúncios substituiu no altar a cruz comum que nos unia nos ritos às demais Igrejas. Assistimos o esquecimento dos credos comuns nas liturgias de domingo e uma geração cresceu sem afirmar "cremos na Igreja una, santa, católica e apostólica". Assistimos a tudo e fomos lenientes, preguiçosos(as), não tratamos o ecumenismo como um bem precioso. Não reagimos e perdemos uma geração para o ecumenismo e para a tolerância.
A partir dessas ponderações, Adonias, peço-lhe considerar:
- A possibilidade de defender que o nosso concílio que continua em outubro faça a revisão da decisão tomada e por graça encare o bom convívio ecumênico não como restritivo mas como expansivo das possibilidades de evangelizar e de declarar com honestidade as diferenças com as demais Igrejas. Um concílio que termina com vencidos(as) e vencedores(as) não é promissão de bom tempo para a Igreja. Mostrou uma Igreja dividida, com 40 por cento de um lado e 60 por cento de outro. Saímos de uma fase de um concílio que não conciliou. Mostrou uma Igreja em descompasso com o metodismo mundial, que na semana seguinte, em concílio reunido na Coréia, homologou o resultado da comissão de diálogo com a Igreja Católica de entendimento comum da doutrina da justificação, que foi a principal razão do cisma da Reforma. Ou seja, doutrinariamente, o que mais nos separava já não separa mais. O mesmo concílio mundial elegeu o bispo Lockmann como guardião deste preceito ao colocá-lo como seu vice–presidente. Será muita incoerência não rediscutirmos a posição da Igreja do Brasil frente à decisão do metodismo mundial. Não parece adequado imaginar que estamos certos sozinhos.
- Que independentemente da revisão seja criada uma comissão de diálogo com a Igreja Católica Romana no Brasil que gere documentos a serem amplamente discutidos por nossas comunidades e eduque a nós e aos(às) católicos(as). Da mesma forma deve ser criada comissão oficial de diálogo com as igrejas de tradição wesleyana, do Exército de Salvação aos cismas nacionais mais recentes. Seria muito positivo instituir também uma comissão de diálogo com os principais ramos do pentecostalismo no Brasil, pois este é o protestantismo que deu certo em nossa cultura e dele temos muito a aprender. Não podemos perder nossa condição de Igreja-ponte entre as demais, que é como nossa Igreja é vista.
- Que a mesma compaixão que você exercitou comigo e com os(as) Baikari, Adonias, cabe exercitar, na condição de bispo da Igreja, com os(as) de outras experiências de fé. A compaixão deve ser a medida para se acolher o Dalai Lama, a mãe-de-santo, o(a) rabino(a), os(as) crentes do Islã, os(as) descrentes. São Paulo apóstolo no areópago não tomou tempo e energia na condenação das divindades ali representadas. Respeitoso, cuidou apenas de anunciar o Deus desconhecido. Nós semeamos e plantamos. Deus dá o crescimento. Não podemos ter a presunção de executarmos a parte que cabe a Deus. Basta que não nos neguemos a dar razão de nossa fé aos(às) demais. Lembro-me de João Wesley em Thoughts upon slavery destacando de forma positiva a forma como as sociedades islâmicas africanas respeitam os(as) idosos e cuidam da educação dos(as) jovens. No texto Thoughts on scarcity of provisions ele destaca que a Argélia muçulmana nunca trocaria o sangue de seus(suas) filhos(as) por lucros com a indústria do álcool. Ou seja, não rejeita a ética de outro grupo, de outra fé, para admoestar cristãos(ãs).
No mais, Adonias, entendo que a decisão do concílio de não reeleger alguns bispos, mesmo que contestável por não diminuir a estrutura desnecessária e pesada para a missão da Igreja, que poderia ter sido simplificada, provoca a saudável lembrança a todos(as) que o episcopado em nossa Igreja é exercício especial do presbiterato e não uma ordem em si. Portanto, digno é o pastorado em igreja local para o qual todos(as) têm de estar preparados(as) o tempo todo.
Penso que a decisão de coibir a participação em conselhos diretores das IMEs de funcionários(as) de IMEs ajudará a Igreja a encontrar as centenas de lideranças universitárias metodistas do país inteiro que não trabalham nas IMEs e podem ajudar a pensá-las de forma mais missionária. No entanto, o mais grave o concílio não barrou e está a tempo: quem participa de Conselho Diretor não deve ser prestador de serviços a outras IMEs. Hoje, há abnegados presidentes de conselhos. Mas, parte significativa dos problemas vividos em nossas instituições metodistas de educação devemos a presidentes de CDs que foram ou são prestadores de serviços e que são tentados a medir suas decisões não pelo que seria melhor para a Igreja mas pelo que garantiria seus contratos e possibilidades de obter mais lucros em outra IME. Tal participação, sim, tem sido danosa ao bom desempenho e ao testemunho das instituições da Igreja. Mudanças nesse quadro devem ter efeito imediato, com perda de mandatos ou com renúncia. Se os mandatos dados pela Cogeam forem cumpridos na íntegra, atravessarão todo o interregno entre os concílios e tirarão da decisão conciliar a força de mudança.
Desejo, pela vivência no Centro-Oeste, que você veja na sua eleição a grande oportunidade missionária de retirar a sede episcopal do interior de São Paulo e levá-la para Brasília, onde ela, estrategicamente, já deveria estar. Desejo também que o Cogeime, como Rede Metodista de Educação, seja induzido a deixar a zona de conforto de São Paulo e assuma a sua sede em Brasília, onde de fato todas as decisões são tomadas na área da Educação, livrando assim as IMEs de assessorias difusas e caras, pagas em Brasília. Ficar em São Paulo é atitude de conformação à zona de conforto. Não jogue fora a oportunidade de renovação que o episcopado lhe dá.
No mais, amigo, espero que uma eventual e infeliz confirmação da saída da Igreja Metodista dos espaços em que a Igreja Católica participa não se constitua em negar a condição da Igreja Católica como Igreja Cristã e irmã, pois isso nos colocaria na condição de juízes(as). A sua entrevista, se lida na boa tradição de tolerância protestante do interior de Minas, em que separamos o que é católico (entendendo-nos como católicos-as) do que é papista ou romanista, o colocaria como papista, porque você declara o que interditaria se bispo fosse. É a típica atitude romanista, de mando concentrado. Temos de nos lembrar de nossa tradição conciliar e do pastoreio colegiado da Igreja. Bispos(as), como nós leigos(as), são servidores(as) da Igreja e do Reino e não juízes(as). Temos de manter os espaços abertos e respiráveis. É tarefa de bispos(a) o cuidado da unidade da Igreja. Não pode resultar desse momento o alijamento de quem pensa e age ecumenicamente na Igreja Metodista na relação com a Igreja Católica. Comunidades metodistas inteiras são ecumênicas e celebram com a Igreja Católica e não podem ser interditadas. Outras estão divididas e não podem se dividir ainda mais com vencidos(as) e vencedores(as) internamente. Há milhares de famílias compostas de casamentos mistos entre metodistas e católicos(as) nas quais o diálogo e a visitação ecumênica são uma constante. É importante considerar que antes deste concílio nunca houve cerceamento a quem declarasse objeção de consciência ao ecumenismo em nossa Igreja. A experiência pessoal era respeitada e metodistas sem convicção ecumênica ou mesmo contra o ecumenismo transitavam por todos os espaços da Igreja, até no episcopado. Comunidades não foram constrangidas a participar de eventos ecumênicos por ser o ecumenismo orientação oficial da Igreja.
Desejo muito que uma possível revisão da decisão da primeira fase do concílio não seja movida por razões como as que tenho ouvido, como a de se evitar perda de recursos financeiros de agências ecumênicas internacionais para projetos da Igreja. Independentemente de qualquer posição quanto ao ecumenismo, temos de nos posicionar contra a continuidade do papel de nossa Igreja como receptora de recursos. Hoje, o perfil de nossa Igreja e de nosso país nos impõe a condição de doadores e não mais de receptores. Recursos captados para cá são desviados de Igrejas que fariam muito mais com eles, em países que precisam mais e onde os recursos teriam impacto muito maior na transformação das condições de vida das pessoas e de comunidades. Falta fidelidade a nós e falta a educação para a solidariedade que determina a disciplina com os recursos que administramos em nossa vida pessoal e na vida de nossas comunidades.
Quanto à sua proposta de um ecumenismo restrito, proponho a volta às Escrituras e a Jesus. Penso que não há limite para o ecumenismo, como na hesitação nosso colégio episcopal indicou haver, nem parece adequado propor ecumenismo restrito. Para o ecumenismo parece-me mais apropriado falarmos de alcance, não de limite. Tomo como alcance do ecumenismo o indicado pelo Senhor: "as prostitutas nos precederão no Reino".
Na saudade e na estima,
Jaider Batista da Silva, membro leigo da Igreja Metodista em Santa Helena, Governador Valadares, MG.
2 Comments:
Parabéns Jaider.
Sua fala foi maravilhosa em todos os sentidos e seu raciocinio e avaliação brilhantes...
Prezado Jaider, gostei da coerência, da ousadia e da franquesa em dirigir-se ao novo bispo.
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