01 agosto, 2006

O futuro das religiões

(ou: O futuro do Metodismo Brasileiro depois do último Concílio Geral)

Um breve comentário e uma contribuição ao debate da Questão Ecumênica

Escreve Rev. Omir Wesley Andrade*

O artigo O futuro das religiões, de autoria do antropólogo norte-americano Clifford Geertz[1], publicado à página 10 no caderno mais! do jornal Folha de S. Paulo do último dia 14 de maio de 2006, deve ser lido, por todos nós, como expressão, na profundeza de seu conteúdo, da preocupação com o futuro da religião (ou, no plural, como quer Geertz, das religiões).

Geertz, em seu artigo, começa por desmistificar a idéia, difundida por muitos sociólogos e cientistas sociais, do “retorno da religião” nos dias atuais. Tal noção, segundo ele, não leva em consideração o fato de que “a religião nunca desapareceu”, embora renomados sociólogos e teólogos – especialmente na segunda metade do século XX – insistissem em decretar a falência e morte dos valores e tradições inerentes às diversas religiões. Os eventos e acontecimentos trágicos da história recente da Humanidade, nos anos finais do século XX e nos primeiros anos do século XXI, ao lado do persistente interesse pelas religiões nas sociedades humanas, tanto no Ocidente como no Oriente, demonstram que é ilusória e inverídica “a concepção da religião como força em constante declínio”. Aliás, muito pelo contrário.

Geertz chama a nossa atenção para a “reação em cadeia”, perpetrada em especial pelas grandes religiões orientais na segunda metade do século XX (hinduísmo, budismo e, principalmente, islamismo), em violenta contraposição à idéia de que a secularização, com o conseqüente “fim” das religiões, seria o destino inexorável e inescapável de toda a Humanidade. E tal reação, como dissemos, foi violenta e radical: eclodiram (na Índia, na Nigéria, na Indonésia, na Argélia e, mais recentemente, no Iraque) “conflitos de conotação religiosa – partilha, guerra civil, massacres de minorias religiosas, terrorismo religioso”. Talvez uma das conseqüências mais trágicas e dolorosas da invasão do Iraque pelas forças militares dos EUA seja “a [gravíssima] crise entre as denominações religiosas iraquianas”.

Ao lado da emergência desses conflitos religiosos, Geertz assinala a situação também potencialmente conflitiva da constante e “crescente migração de pessoas e famílias” inteiras, vindas do Oriente e até mesmo de países latino-americanos, para viver nas “sociedades modernas” da Europa e dos EUA, especialmente quando existe o natural desejo de explicitar livremente os valores e tradições de sua própria religião.

O que acontece, a partir de então, é o seguinte: cada religião tem a sua “visão de mundo” peculiar e característica. Esta “visão de mundo”, necessariamente, vai colidir frontalmente com a “visão de mundo” das outras religiões, o que exigirá “uma nova conceituação da religião e de seu papel” na construção social da realidade. Geertz dirá que, nos dias de hoje, somos desafiados “à construção de visões de mundo com base na inevitável ‘colisão de sensibilidades’ religiosas”. Não podemos mais nos omitir ao encontro dialógico entre as diferentes religiões do mundo contemporâneo.

Na modernidade, não falamos mais “da religião”. Falamos “das religiões” e, “nas religiões”, o que impera, em grau cada vez maior, é “a diversidade de crença, de fé e de envolvimento”.

Qual é, neste contexto, a grande questão para nós? A grande questão, responde Geertz, pode ser reduzida ao discernimento do horizonte moral, ético e espiritual das diferentes religiões. E tal horizonte existe, quer aceitemos ou não. No fundo, o que existe mesmo é a explosão, agora inevitável e definitiva, do conflito outrora latente entre os valores das diferentes tradições religiosas e “os processos de transformação e reformulação de cada religião específica no momento em que ela se vê penetrada” pela modernidade (ou, se o quisermos, também pela pós-modernidade e pela globalização).

Geertz, em seu artigo, procura desvelar, em toda a sua crueza, a grande tragédia gerada pela tentativa de convivência pacífica e “ecumênica” das diferentes religiões e suas mais caras tradições com o mundo da modernidade e da globalização. E isto se dá porque, dos dois lados, existe teimosia obstinada, dogmatismo e intolerância. E, aqui, a grande tragédia para as religiões pode ser resumida em “três palavrinhas só”: crise de identidade.

Geertz faz referência (o que nos deve preocupar e interessar particularmente) ao estrondoso crescimento numérico das “igrejas evangélicas neo-pentecostais” nos países latino-americanos e ao ressurgimento da “direita cristã” e fundamentalista nos EUA da “era Bush”. Falando de forma genérica das grandes religiões da Humanidade (o hinduísmo, o budismo, o judaismo, o cristianismo e o islamismo), Geertz afirma que esta grande “geléia geral” (como diria Gilberto Gil) é reflexo da “busca por sentido em uma situação política [internacional instável e] mutável, marcada pelo(s) discurso(s) nacionalista(s) e fragmentada em facções [políticas e também religiosas] concorrentes”.

Geertz propõe, no estudo das religiões, uma “volta ao primeiro amor”, um retorno ao primitivismo puro, genuíno, verdadeiro e original das religiões indígenas, para a redescoberta e compreensão do sentido e do significado das religiões e, em última análise, do valor ético, moral e espiritual da religiosidade humana. Geertz vai ainda mais além e entende que a religião, na diversidade de suas manifestações, deve ser revalorizada e redimensionada como “componente [essencial e fundamental] das mudanças sociais”.

Geertz afirma, finalmente, que estamos “dentro do turbilhão” de uma revolução religiosa que está acontecendo aqui e agora, diante de nossos olhos por vezes estupefatos. E não podemos perder tempo. Não temos o direito de perder tempo. Ao contrário, no imediatismo que caracteriza o universo computadorizado da globalização, o desafio é “aplicar as ciências humanas” (e a reflexão teológica e pastoral, completaria eu) para analisar os fenômenos sociais e religiosos “no momento em que os mesmos estão se desenrolando diante dos nossos olhos”. Chega de “observação distanciada”. Chegou a hora da “paixão sociológica” (e também da paixão teológica e pastoral) “Quem sabe, faz a hora” (como diria Geraldo Vandré) e não fica apenas observando e analisando o fenômeno social ou religioso, “esperando para ver o que vai acontecer”. Neste sentido, Geertz ainda afirmará que é imperioso e prioritário que as ciências sociais, as ciências humanas e, no contexto eclesial cristão, a teologia pastoral, definam o “como” de uma ação “eficaz, forte e precisa” para alcançar tal objetivo.

Creio que as mesmas observações críticas e o mesmo convite à reflexão e à ação podem ser feitos também à teologia cristã, em especial no contexto das Igrejas Protestantes Históricas no Brasil de hoje. Particularmente como Igreja Metodista em terras brasileiras, nos dias de hoje, temos reagido com excessiva timidez e covardia diante do assédio “evangelístico” (sic!) cada vez mais escancarado das “igrejolas” e dos movimentos neo-pentecostais. É nosso dever profético, como metodistas, sair da acomodação e do imobilismo que infelizmente têm feito de nós uma comunidade eclesial que se contenta em apenas “ver a banda passar” (como diria Chico Buarque), com um discurso pluralista teológica e pastoralmente irresponsável, para “mergulhar de cabeça” na elaboração de uma crítica teológica mais audaciosa, astuta, inteligente, corajosa, mordaz, radical e biblicamente bem fundamentada à religiosidade neo-pentecostal e às suas falácias. É preciso, para que isso aconteça de verdade, que tenhamos coragem profética para dizer “adeus às ilusões” e à leitura ingênua de nossa realidade eclesial e social, denunciando – em nome de nossa fidelidade aos valores éticos e teológicos do Evangelho de Jesus Cristo e do próprio Metodismo histórico – os equívocos teológicos, heresias e pecados que vêm sendo cometidos pelas assim chamadas “religões neo-pentecostais”. Mas, atenção!!! Aqui estamos numa pista de duas mãos. Esta atitude requer de nós também o exercício de algumas virtudes essenciais: o amor cristão, a sinceridade, a humildade, a busca desinteressada da verdade, a abertura “ecumênica” e a sensibilidade pastoral para também aprender lições com o movimento neo-pentecostal. E por que? Porque precisamos reconhecer que muitas vezes, enquanto fazemos um belo e competente discurso teológico, as igrejas, os grupos e os movimentos neo-pentecostais estão conseguindo fazer o que nós – que tragédia! – não estamos mais conseguindo fazer: atingir, com uma mensagem transformadora, para o bem ou para o mal, a vida e o coração das pessoas. Por que será? Em outras palavras, é urgente para nós, metodistas em terras brasileiras, buscar respostas plausíveis e convincentes à seguinte questão: O que significa hoje, para “o povo chamado metodista” no Brasil, com tantos desafios e oportunidades, viver e anunciar o Evangelho de Jesus Cristo como “o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” e, assim, atingir e transformar a vida e o coração das pessoas? Como atualizar, de forma significativa e relevante, a mensagem do Evangelho para o povo brasileiro em 2006, em pleno século XXI? Caso o consigamos, concluirá Geertz, talvez os “tempos modernos” do ecumenismo (parodiando Charles Chaplin) – embora ambíguos, perigosos e contraditórios – se transformem numa inesperada bênção de Deus para todos nós.

P.S.: Este texto foi originalmente escrito para o Curso de Formação de Professore/sas para o Ensino Religioso, promovido pela Coordenação Nacional de Educação da Igreja Metodista e pela CONAPEU (Coordenação Nacional das Pastorais Escolares e Universitárias da Igreja Metodista), sob a supervisão do COGEIME (Conselho Geral das Instituições Metodistas de Educação) e do Colégio Episcopal da Igreja Metodista, antes da realização do último Concílio Geral da Igreja Metodista. Portanto, tomei a liberdade de fazer algumas alteração no seu conteúdo, em face das decisões e encaminhamentos do nosso último Concílio Geral.

Fica claro, no texto de Geertz, que o único futuro possível para as religiões é a radical abertura ao diálogo ecumênico, com todas as suas conflitivas e enriquecedoras conseqüências. Tal postura, para nossa tristeza e indignação enquanto metodistas, contrasta frontalmente com a recente e inaceitável decisão do último Concílio Geral no sentido de desfiliar a nossa amada Igreja Metodista de todos os organismos ecumênicos onde estejam presentes a Igreja Católica Apostólica Romana ou outras religiões não-cristãs.

Com esta decisão, infelizmente, a Igreja Metodista em terras brasileiras se coloca na contramão da história, tanto da sua bela e rica tradição histórica, teológica e pastoral – que é inquestionavelmente ecumênica – como da história das atuais, necessárias e relevantes relações ecumênicas interconfessionais (entre as religiões cristãs) e inter-religiosas (entre as diferentes religiões espalhadas pelo mundo atual).

Concluindo, convido a todos para que reflitamos nas palavras proféticas do Credo, transcrito abaixo, com alterações e acréscimos por mim propostos em face do momento histórico que estamos vivendo no Metodismo Brasileiro:


Um Novo Credo para um Novo Milênio

Chegou a hora de desmascarar os traficantes da identidade cristã e os mercadores da esperança cristã, dentro e fora da Igreja Metodista. Afirmamos o privilégio, o direito e o dever de ser metodistas dentro da Igreja Metodista. Chegou a hora de declarar o nosso amor a Jesus Cristo e também, por que não?, à Igreja Metodista, na qual aprendemos a viver e a expressar livremente os valores da nossa fé. Chegou a hora de dizer, com coragem profética: “O ‘show’ acabou”. Chegou a hora de cultivar a nossa qualidade de ser. Somos fracos, de espírito partido, porém somos dignos. Por que? Porque, tanto na vida quanto na morte, pertencemos a Deus. Por isso, frente à dor real, pessoal e institucionalizada, propomos a prática do amor real, pessoal e institucionalizado, sem esquecer da ternura, da simplicidade, da astúcia, da prudência, do discernimento, da sabedoria, da paciência, da perseverança e da transparência. Propomos celebrar a vida, sem vergonha de chorar nossas dores e decepções. Propomos, apesar de tudo, apertar as mãos e sempre tocar com amor o coração das pessoas. Propomos também, nesta hora, que olhemos para nós mesmos. Não temos sido auto-suficientes? Não temos sido prepotentes, arrogantes e presunçosos? Propomos humildade, honestidade, seriedade e sinceridade para com Deus e para com os nossos irmãos e irmãs, sejam eles cristãos ou não-cristãos. Propomos defender a dignidade de cada pessoa humana como filho e filha de Deus. Propomos perdoar. Propomos aceitar o fato de que nós, todos nós, já fomos perdoados por Deus. Propomos buscar sempre a verdade, onde quer que ela se encontre. Propomos não confundir as nossas verdades particulares com a Verdade. Propomos ouvir, ver, sentir, refletir, fazer, ser. Propomos, como discípulos e discípulas, seguir as pegadas do Carpinteiro de Nazaré. Amém!

(Credo de autoria de Dennis A. Smith, extraído da REL – Rede Eletrônica de Liturgia e Evangelização do CLAI. Redação, adaptação e texto final do Rev. Omir Wesley Andrade).

*O Rev. Omir Wesley Andrade é Pastor Metodista e Coordenador da Pastoral Escolar do IALIM – Instituto Americano de Lins da Igreja Metodista.

[1] O norte-americano Clifford Geertz, nascido em 1926, um dos mais importantes nomes da antropologia contemporânea, é professor emérito do Instituto de Estudos Avançados da Universidade Princeton. A antropologia “hermenêutica” que defende é uma disciplina que, analogamente à crítica literária, lida com textos culturais, escritos ou não. Geertz é muitas vezes identificado como inspirador de movimentos pós-modernos na antropologia e nos estudos literários. Em Obras e Vidas (Ed. UFRJ), ele analisa o livro Tristes Trópicos (Companhia das Letras), do francês Claude Lévi-Strauss. É autor de A Interpretação das Culturas (Ed. LTC), Saber Local (Vozes), Negara – O Estado Teatro no Século XIX (Bertrand Brasil), Observando o Islã (Jorge Zahar) e Nova Luz sobre a Antropologia (Jorge Zahar), entre outros livros.