20 agosto, 2006

UM TESTEMUNHO

Por: Orvandil Moreira Barbosa

Meus irmãos metodistas, gostaria muito de dar outro testemunho do quanto essa igreja influenciou a sociedade brasileira e, particularmente, a gaúcha, na década de 80. Quando a ditadura militar começava a dar sinais de esgotamento, mas mesmo assim era forte, a IM, exercendo sua forte visão ecumênica e engajamento social somava-se à linha de frente da luta pelo resgate da soberania nacional e pela democracia brasileira.

1. Em 1973 fui transferido para atuar pastoralmente na Igreja Metodista Central de Uruguaiana. Passei a fazer parte de movimentos ecumênicos e sociais que promoviam esforços pela redemocratização do Brasil. Representei a igreja na mídia – rádios, tv e jornais – levando diariamente as posições exaradas no Credo Social e no nascente Plano para a Vida e Missão da Igreja, que começava a ser gestado. Embora os órgãos de repressão exercessem forte pressão sobre o Bispo Sady Machado da Silva, este nunca cogitou de que devêssemos silenciar ou nos amedrontar. Pelo contrário, o Bispo se colocava sempre ao nosso lado, compartilhando conforto e ânimo. Ele gostava de comparecer a atos ecumênicos, mostrando-se simpático e unificador.

2. Em 1978 fui transferido para a cidade de Cruz Alta, terra natal do atual Bispo da IIª RE. Logo a igreja se deparou com a luta sofrida de agricultores apelidados de “afogados do Passo Real”. Eram assim chamados em virtude de o governo do Estado, sob Ildo Meneghetti, ter construído uma barragem cujas águas tomaram conta de todas as pequenas propriedades ao redor de Ibirubá, jogando centenas de famílias às margens das estradas. Ao percebermos a situação levantamos a voz profética em favor de melhores condições de vida àqueles trabalhadores. Suspeito que as ações lá realizadas serviram de elemento para o início do MST. Não tardou para que a igreja assumisse a causa dos indígenas, participando de grandes encontros de projeção nacional, iniciando nas Ruínas de São Miguel. Somamos ao lado de D. Pedro Cassaldáliga, D. Tomaz Balduíno, da IECLB e de tantos outros agentes de transformações sociais. Mas, com certeza, a GTME começou na casa pastoral da igreja Metodista de Cruz Alta, no meu pastorado. Ao chegar naquela cidade me deparei com uns encontros “ecumênicos” completamente desvirtuados, girando em torno de comida, bebida e “confraternização”. Não tardou para que buscássemos conteúdo ecumênico contextualizado e comprometido socialmente. Nossa agenda passou a se ocupar com os movimentos sociais e com a luta pela redemocratização do País. Nisso angariamos a solidariedade de D. Jacó, Bispo Diocesano e de padres da ICAR e de inúmeros pastores evangélicos. É claro, dois outros pastores de igrejas evangélicas se afastaram alegando que eram amigos do General e que nos achavam muito de esquerda. Não tardou para que pressões se manifestassem para que eu fosse transferido daquela cidade, promovidas por agentes do anti-ecumenismo e do atraso social, alegando que eu não queria batizar seus filhos e fazer casamentos de seus parentes etc. Aprendi que calúnias e injúrias são inerentes ao processo da luta. Até que num dia, sem que ninguém da igreja local soubesse oficialmente, o Bispo Sady passou um dia inteiro de sábado sob interrogatório no QG. Quando chegou à casa pastoral me informou de todos os passos dados pela repressão para calar a voz da igreja. Aliás, ele relatou detalhes impressionantes.

3. Em 1879 fui transferido para Santa Maria-RS. Ali fui atender a Igreja Bom Pastor, de onde partiu agora um manifesto de sua liderança expressando angústia pelos rumos tomados oficialmente pelo Concílio Geral, referente a retirada da IM do ecumenismo. Já em março do mesmo ano lideranças da Igreja Bom Pastor participamos diretamente da mobilização denominada “Passeata da Panela Vazia”, quando mobilizamos em torno de 16.000 pessoas em praça pública. Foi o maior movimento acontecido naquela cidade após as greves dos ferroviários. Lá estava a IM, firme no seu testemunho social e ecumênico, fazendo parte da liderança do movimento e se constituindo em testemunho inconteste das transformações sociais. O Bispo Sady era informado de todos os passos e a tudo apoiava, embora nem sempre concordasse com um detalhe ou outro. Nosso SD era o Rev. Isac Aço. Este era entusiasticamente apaixonado pelas causas ecumênicas e sociais. Num determinado momento os bancários entraram em greve nacional e suas lideranças foram presas. O Rev. Isac e eu compartilhamos solidariedade e conforto aos presos e seus familiares. Motivamos os pastores e padres da cidade a elaborar um documento analisando a conjuntura e prestando apoio aos grevistas. O fato repercutiu nacionalmente, sendo o texto lido por Cid Moreira no Jornal Nacional, da TV Globo, embora essa sempre apoiasse a ditadura. Enfim, o movimento ecumênico ganhou tantas proporções, que se tornou marco de transformação e reforço à luta pelas mudanças no Brasil. Éramos visitados constantemente por lideranças internacionais progressistas que se interessavam em conhecer a luta e sua dinâmica.

4. Até que, na mesma cidade, chegou 1980. Naquele ano tive a casa pastoral invadida por forças repressivas, a intimidade de minha família devassada, livros e documentos presos. A partir daí muitas das ameaças que sofria desde o seminário se transformaram em prisões, em interrogatórios, em processos instaurados à luz da famigerada Lei de Segurança Nacional, sob inspiração autoritária e anti-democrática, até o dia em que fui julgado e condenado a 2 anos e 6 meses de prisão. Mas foi naquele momento que a consciência ecumênica e social da IM se revelou ainda mais robusta e profunda. Antes do julgamento, ao passar pelos imensos constrangimentos dos interrogatórios, sentíamos que a ditadura não se satisfazia com tomadas cartoriais e anunciou a ida de um delegado, famoso por sua truculência e barbárie praticadas contra presos políticos, para me “interrogar”. Mas os Bispos Metodista, Anglicano e Católico Romano se reuniram imediatamente para avaliar a situação e tomar posição. O fato repercutiu nacional e mundialmente. A ditadura recuou e o delegado não me interrogou. Mais uma vez a IM praticou o ecumenismo prático e objetivo, enriquecendo os valores humanos da democracia e do respeito à liberdade de luta e de organização sociais. Até que chegou o tenso dia de meu “julgamento”. Lá, à frente da Auditoria Militar, estavam centenas de católicos, luteranos, anglicanos, democratas, metodistas etc, todos solidários à luta, fazendo a mesma afirmação: na cadeira dos réus estava a Igreja Metodista e ela era a julgada e, depois, condenada, por ser ecumênica e comprometida socialmente. Afirmação correta, pois dias antes eu recebera apoio e solidariedade oficiais do Concílio Geral, reunido em Belo Horizonte. No “julgamento” estiveram inúmeros Bispos e autoridades representativas da IM e do movimento ecumênico internacional. Mas não posso deixar de destacar o testemunho da UNIMEP e do Prof. Elias Boaventura. Estes se responsabilizaram por minha defesa, contratando advogado da melhor qualidade para atuar em minha defesa e na defesa da igreja. A UNIMEP se constituiu, através de muitas ações, inclusive daquela, em baluarte da luta pela redemocratização do Brasil e num referencial respeitado.

5. Em 1983 fui transferido para Porto Alegre, sob o espiscopado do grande homem Isac Aço, de saudosa memória. Na capital fui nomeado SD e eleito vice-presidente do Conselho Regional, órgão máximo de administração da região eclesiástica. Em viagens internacioanis do Bispo Isac Aço eu respondia pela região, dentro dos limites óbvios do cargo. Naquela contexto se espraiavam os ventos da campanha pelas Diretas Já. E lá estávamos nós, como igreja, a representar o pensamento ecumênico e social na luta pelo resgate dos direitos políticos do povo, aspecto importante da salvação cidadânica.

6. Destaco que a experiência ecumênica tinha a marca de profunda espiritualidade. Esta era conteúdo dos que se comprometiam com o projeto libertador de Jesus. A Bíblia era nosso referencial principal. Nossas celebrações eram alimento para a luta e nunca para a auto-satisfação. Nossas orações não eram transferências de responsabilidades para a divindade, bem própria ao misticismo de seita medieval, mas a busca do Outro, em Jesus, que radicaliza a fé na prática. Nessa perspectiva as linhas divisórias do caseirismo intra-denominacional não eram valorizadas. Mas todos/as nos sentíamos irmãos/ãs e companheiros da mesma caminhada libertadora. Libertação era a mesma coisa que salvação. A busca de profundidade teológica era feita com interesse e entusiasmo. Nossas bibliotecas eram fartas e se renovavam semanalmente, pois a prática séria exigia teoria séria.

7. Finalmente, rapidamente senti que o ecumenismo se esfumaçava em todas as igrejas. O monitoramento veio do Vaticano, sob a égide dos conservadores e anti-comunistas João Paulo II e Cardeal Ratzinguer. Muitas denominações passaram a cuidar da moralidade e conversão pessoal de seus rebanhos. Os movimentos carismáticos e pentecostalizantes cresceram no mundo todo, principalmente nas Américas, com marcas agudamente conservadoras e direitistas. Sinais disso foram a teologia da prosperidade, significativamente de conteúdo capitalista, a elição de um presidente na Gautemala, comprometido com a direita e os esquadrões da morte e, finalmente, com a eleição de George W. Busch, o presidente dos Estados Unidos mais sanguinário e criminoso de toda a história daquele país. Pois, Busch tem o apoio de milhares de igrejas ditas evangélicas nas invasões criminosas que faz do Afganistão, do Iraque e, agora, do Líbano e da Palestina. Há poucos dias convidei uma grande liderança de uma Associação de Igrejas Evangélicas para participar de um ato em favor da paz e contra a violência no Líbano. Ele me respondeu que não participaria porque era a favor de Israel e de tudo o que aquele país faz contra os palestinos. Talvez não seja coincidência, mas informações do Congresso Nacional Brasileiro, dão conta de que grande parte dos sanguessugas do orçamento têm número enorme de pastores e deputados evangélicos. Lideranças de igrejas tradicionais empinaram o nariz e arrogante e alienadamente, perdidas, se afastaram da luta social, essência privilegiada do ecumenismo, abandonando grupos e pessoas que lutavam nas frentes libertadoras.

Por isso penso, sem nenhuma pretensão, creio que o ecumenismo, hoje, depende muito mais dos que se comprometem com Jesus e com a libertação do povo do que de bispos e chefes de igrejas, que, na sua arrogância, se enrolam em crises institucionais. Nesse sentido há muito o que fazer. A luta continua e é fértil. Esta plasmará novo ecumenismo e novo modo de ser igreja.

Muitos abraços aos meus/minhas amados/as irmãos/ãs metodistas. Peço que os metodistas comprometidos com o Credo Social e com o Plano da Vida e Missão da Igreja continuem ecumênicos. Vivemos momento extremamente rico e desafiador no Brasil e na América Latina. Há lugar generoso e intenso para os ecumênicos. Venham, irmãos/ãs.

Orvandil Moreira Barbosa