15 maio, 2009

Agar: a história de uma mulher usada e abusada a quem Deus salvou (Gn 16:1-16 e Gn 21:8-21) - Ronan Boechat de Amorim



Todos sabemos que o tempo de Deus (kairos) é diferente de nosso tempo humano (cronos). Abraão e Sara não sabiam ou se esqueceram disso. E todas as vezes que a gente não confia na providencia de Deus, tentando fazer o que Deus demora para fazer, acabamos atropelando a vontade de Deus, afastando-nos dela e ferindo outras pessoas ou a nós mesmos.

Julgando que a promessa do filho estava demorando, Sara usa a sua escrava egípcia Agar para, digamos, “apressar” a ação de Deus. Aparentemente Abraão e Sara “fazem acontecer” a promessa que Deus ainda não havia providenciado. Ela cede sua escrava para seu marido Abraão ter um filho com ela. “toma, pois a minha serva, e assim me edificarei com filhos por meio dela. E Abraão anuiu ao conselho de Sara” (Gn 16:1).

Agar, a mulher reduzida a escrava, usada e abusada, ficou grávida (Gn 16:11) depois que Abraão a “possuiu” (Gn 16:4). “Vingou-se” de sua senhora e dona com seu desprezo (Gn 16:4). E Sara, além de não ter se sentido “edificada” com o nascimento do filho da escrava abusada, visto que não honrou a acordo de assumir (adotar) Ismael como seu filho, não lidava bem com o desprezo da escrava, tornando-se intolerante, rixenta e opressora. Sara humilhou a escrava Agar e ela fugiu de sua presença (Gn 16:6). Foi achada por Deus junto a uma fonte de água no caminho de Sur, uma antiga rota que ia até o Egito, terra da escrava, e que cruzava o deserto de Sur.

Ali Deus a confortou, acudiu (Gn 16:11) e a aconselhou para voltar para a sua senhora e humilhar-se sob as mãos de Sara (Gn 16:9). Ela não apenas obedeceu a Deus, como o invocou sobre si o nome e o favor do Senhor (Gn 16:9). Foi algo tão impactante na vida de Agar que o testemunho que ela deu a outros disso fez com que aquele poço fosse chamado e ficasse conhecido pelo nome de Beer-Laai-Roi, numa alusão a “El Roí”, o Deus que vê.

Quatro anos depois do nascimento de Ismael (Gn 16:16) nasceu Isaque, o filho de Sara (Gn 21:5). Quando tinha por volta de 3 anos de idade Isaque foi desmamado e Sara fica indignada porque supostamente Ismael “caçoava” (embora a palavra hebraica possa significar também “brincava” com ) Isaque. O destempero de Sara, abençoada por Deus com a maternidade, mas ainda recalcada pela esterilidade, manifestou novamente contra a escrava e seu filho: “rejeita esta escrava e seu filho; porque o filho da escrava (que deveria “edificar” Sara) não será herdeiro com meu filho” (Gn 21:10).

Isso foi muito penoso para Abraão, o pai da criança. Aparentemente Abraão só “rejeitou” a Agar e Ismael, deserdando o filho (nascido a partir de um “belo plano” de sua esposa Sara) e expulsando a escrava com “uma mão na frente e outra atrás” (aliás, deu pão e um odre de água!) no meio do deserto, porque teve o consentimento de Deus: “atenda ao pedido da sua mulher, e deixa que eu cuido de Agar e Sara” (cf. Gn 21:12). Não precisava ser tão sovina (pão-duro, mesquinho) e nem deixar a mãe de seu filho errante no meio do deserto.

Com certeza deve ter sido uma boa esposa para Abraão e uma boa mãe para Isaque. Até porque experimentou o grande milagre de, sendo estéril, conceber um filho pela misericórdia de Deus. Mas foi uma pessoa amarga, doentia, ciumenta, vingativa e impiedosa com a mulher que ela usou e que seu marido abusou, quando julgaram que a ação de Deus estava demorando demais.

Desse texto podemos aprender:
1 – Todas as vezes que arrogantemente agimos ou tentamos agir no lugar de Deus, criando alternativas que não são de Deus, problemas vão acontecer. Caminhos e soluções que não vêm de Deus ou se não estão em conformidade com a vontade de Deus, não podem ser bênção!

2 – Ismael nasceu como fruto de um pecado (a falta de confiança em Deus), como uso e abuso de uma mulher escravizada, mas o que devia ser visto como maldição, Deus tornou bênção. Deus tornou Ismael parte da Promessa.

3 – Possivelmente nem Sara nem Abraão tinham consciência do uso e do abuso de outro ser humano. Era uma coisa normal e culturalmente aceita e praticada. Isso revela que nem tudo que é cultural ou normal ou moralmente aceito é bom, é do bem, é de Deus. Não tenho dúvidas que Abraão amou aquele filho que o ciúme e amargura de Sara lhe tiraram a convivência quando Ismael tinha por volta dos seus 7 anos de idade.

4 – Pode até não ser o que acontece regularmente, mas homens podem ser meigos e sensíveis e mulheres embrutecidas; mães podem ser intoleran-tes e vingativas e pais podem ser generosos. Não é o sexo masculino ou fe-minino que torna alguém gentil ou não. É o pecado que embrutece. É o Espí-rito Santo que transforma coração de pedra em coração de carne (sensível).

5 – Não há porque não afirmarmos que Sara foi uma boa pessoa. Mas particularmente na questão da maternidade e na sua relação com a escrava Agar e o filho Ismael que ela planejou, foi uma mulher intolerante e cruel. Amarguras, complexos, sentimentos de inferioridade, etc, quando não são curados podem ser perigosos e machucar outras pessoas.

Sara certamente foi também uma mulher sofrida e oprimida naquela soci-edade patriarcal (governada com mão de ferro pelos homens), por isso esses episódios aqui não podem apequenar esta grande mulher. Essa história com Agar não é a síntese da vida de Sara. Ela foi maior que sua dor e amargura. Não julguemos alguém, mesmo alguém cronológica e culturalmente tão dis-tante de nós, apenas por um ato ou um fato ou uma passagem de sua vida.


6 – Agar, a mulher reduzida à escravidão, conseguiu ouvir, amar e obedecer a Deus apesar de ser uma mulher de um outro povo, outra cultura e, muito possivelmente, outra religião. Apesar também do mau testemunho dos seus escravizadores e do mal que experimentou naquela casa. O amor de Deus não conhece barreiras para se manifestar abundantemente e nem para ser experimentado graciosamente. Ninguém pode impedir o amor e a promessa de salvação da parte de Deus.

7 - Abraão pode ter dado muito pouco à Agar: pão e um odre de água. Mas Deus cuidou daquela mulher rejeitada e de seu filho. Deus exaltou aquela mulher que fora humilhada. E quando acabou a água do seu odre no meio do deserto, Agar protegeu o seu filho (Gn 21:15) e "levantou a sua voz e chorou" (Gn 21:16).

Segundo o texto hebraico quem chorou foi Agar. Segundo a versão grega (a tradução feita em Alexandria, no Egito, dos textos hebraicos para o o grego), quem chorou foi a criança. Mas Gn 21:16 diz que Agar chora, e Gn 21:17 diz que Deus ouviu a voz do menino. É muito curioso o jogo de palavras "Deus ouviu" o menino com o próprio nome do menino. Ismael significa "Deus ouve".

O fato é que Deus ouviu e cumpriu sua promessa de salvação.

E disse para aquela mãe (cf. Gn 21:18-19):
- ergue-te
- levanta o rapaz;
- segura-o pela mão
- porque eu farei dele um grande povo.

E logo a salvação aconteceu (Gn 21:19):
"Abrindo-lhe Deus os olhos, viu ela um poço de água e, e indo Agar ao poço,
encheu de água o seu odre, e deu de beber ao rapaz.

Deus estava com o rapaz (Gn 21:21). Aleluia!

8 - Na maior parte das vezes, caidos se tornam "cegos" pela falta de esperança e pelo desespero. Caídos não podem levantar caídos.

Mas caídos podem gritar por socorro até serem ouvidos e devem fazer isso.

Há um Deus que ouve oração, que se inclina para ouvir... que nos infunde coragem e cuja presença aponta o caminho.

Ele continua dizendo aos que o buscam: "ergue-te!"
Pois só erguido você poderá erguer outros e fazer diferença.
Estenda as mãos solidariamente e abra os braços acolhedoramente.

A confiança em Deus lhe dará coragem. E lhe abrirá os olhos para você perceber que há um poço no deserto onde você vive errante. Você poderá viver e habitar no deserto. Mas poderá também tomar a decisão de voltar pra casa.