04 janeiro, 2008

Epifania do Senhor - Ano "A"

Isaías 60,1-6 – Levanta-te e resplandece, ó Jerusalém.
Salmo 72,1-7;10-14 – O Rei prometido governará com justiça.
Efésios 3,1-12 – Todos os povos compartilham a mesma herança de Cristo.
Mateus 2,1-12: Alguns magos do oriente prostram-se diante de Jesus

EPIFANIA SEM LOUVAÇÃO GOSPEL INTERESSEIRA

Era motivado o Culto Cristão, no 1o. século, pela reunião eucarística, a comunhão da Ceia do Senhor. Todos os domingos! E era só isso, ao que tudo indica. A páscoa cristã, como tempo litúrgico, a partir do 2o. século, tem tudo a ver com o calendário judaico, se bem que muitos gostariam de esquecer esse fato, incluindo o abandono do AT histórico-profético (falando-se de liturgia, e não da moralidade farisaica, que dá ibope nas igrejas, e tem voto favorável de muitos cristãos, hoje, apesar da luta de Jesus e dos apóstolos, porque recusaram a “reta doutrina” do judaísmo formativo; para esses, parece que Jesus e os apóstolos não foram “bons cristãos”, desse ponto de vista).

Apesar disso, a festa da Epifania é a grande convoca­ção que Deus faz a fim de que todas as nações e raças encontrem forças para tornar humano e fraterno o nosso mundo. Essa é, enfim, a expectativa de Deus que transparece em toda a Bíblia. Mas é em Jesus que ela toma corpo e forma, aparecendo como proposta oferecida a todos. Contudo, a ganância e o desejo de poder – presentes no herodes do tempo de Jesus e nos herodes de todos os tempos – tentam sufocar essa esperança. Porém, os homens de boa vontade têm uma “estrela”, não cessam de “sonhar” um caminho alternativo, o Evangelho real não espiritualizado e moralista que não passa pelas vias dos religiosos pietistas ou puritanos; não nasce da massa comandada nos mega-templos sob a batuta dos pastores empresários que tomaram a igreja evangélica. Emerge, certamente, do menino-pastor nascido numa estrebaria infecta, que equivale, hoje, à criança que só por milagre não foi jogada na lagoa da Pampulha, nem num rio-esgoto de Sta.Luzia, periferia de Belo Horizonte. Essa caminhada é cheia de dificuldades, mas é Deus quem a ilumina, gerando forças e vida nova.

O complexo calendário litúrgico às vezes nos prega peças. Vamos falar de infidelidades? Duas considerações: Começamos com o Advento (todos sabemos que o Natal, originalmente, era uma festa pagã adaptada ao Cristianismo!), quatro domingos antes do Natal. Observavava-se o Advento comemorado durante 40 dias, e não 4 semanas, como praticamos agora, sem referências ao dito Natal, instituído 2 ou 3 séculos após a natalidade do Senhor. Historicamente, a primeira “festa” litúrgica instituída foi o domingo pascal, kyriake’emera, Dia do Senhor. O domingo constantiniano, instituído talvez em 324, pode ter sido a “sabatização” do domingo. Agora, o Dia do Descanso, para os cristãos de poucas décadas atrás, deixou de ser, na “era do lazer”, um dia de culto. Neste tempo, torna-se o dia do Louvor. Em muitas igrejas, os “louvoristas” fazem a sua parte, cantam, deixam o culto, e vão cantar noutro lugar. Quem sabe nos bares gospel abertos por evangélicos nos lugares de diversão noturna, a pretexto de levar um “evangelho evangélico” à vida noturna da cidade.

Por sinal, o “culto diversão” ganha espaço com rapidez. A cultura gospel apresenta-se com uma teologia e espiritualidade egocêntrica, individualista (os animadores incansáveis dirigem-se sempre “ao meu Deus”); afirma-se guerra e vitória certa, que descarta a possibilidade do sofrimento com causa; de fracasso, que parte da cruz de cada dia que integra a caminhada cristã (no entanto, louvoristas são liberados para usar piercing, tatuagens, scar, enquanto são impedidos de ostentar a cruz de Cristo... ); uma teologia centrada no sucesso pessoal do crente, em formas abstratas exibidas ostensivamente; troca-se a fé bíblica no Deus que sofre e convida ao sofrimento com causa (cada um tome a sua cruz e siga-me...), aparentemente “derrotado” pelos poderes do Mal. Não há interesse pela ressurreição (notadamente nas propostas para as ressurreições paulinas: acabar com o homem velho e adotar, em Cristo, a vida no Primogênito da nova criação...), trocada pelo “exemplo da prosperidade”, saúde emocional e física, curas espirituais, e principalmente sucesso financeiro ou profissional; troca-se, também, o kyrie eleison (Senhor, tem piedade de nós!...) por expressões como: “eu posso, eu alcanço vitória com o “Deus da vitória”, por “meus” méritos, por “minha” vida consagrada e “meu” esforço de santidade. Idéia contrária às teses da Reforma Protestante, sobre a Graça e Justificação pela fé, no Cristo de Deus tão somente. Adota-se uma teologia que acentua a arrogância espiritual, que cobra favores do Alto em troca de “vida consagrada” e “santidade interesseira”. Incompreensivelmente, porém, diante do exemplo de humildade do Senhor louvado e adorado em “espírito e em verdade” no culto cristão verdadeiro. O anedotário sobre pastores e louvoristas que “ordenam Deus a fazer e a abençoar”, etc., através do louvor e da adoração desta era evangelical, vai se tornando volumoso. Os jovens dirigem o Louvor imitando-os...

É um culto onde há desprezo à comunidade e à coletividade (através de aparelhos de som possantes, microfones nas mãos dos dirigentes que “comandam” o louvor como a um espetáculo televisionado, anjos com câmeras digitais de última geração, o povo orientado no data show (que faz o papel do teleprompt). E nem precisava, pois a gente humilde das igrejas faz isso há séculos. Com o orgulho quebrado pelos pastores autoritários (“que ordenam bênçãos ao seu deus: - agora vocês baixem a cabeça, e orem!...”), o povo, passivamente, faz o papel da “claque” de auditório. Afirmando-se o individualismo oprimido que adotam os adeptos do culto gospel, ignora-se a gente da comunidade humilhada, normalmente trabalhando com dificuldades de toda ordem;os irmãos empobrecidos, doentes, desempregados, deficientes, idosos desassistidos, murchos, talvez “porque não alcançam vitória pelo louvor...”, porque incapacitada de apresentar os sinais de prosperidade anunciados desde os púlpitos de acrílico copiados da Tv, como ter uma “vida consagrada”, se os crentes pobres não têm como ofertar e comprar as bênçãos? Mesmo quando classificadas como graça barata, que o culto gospel proclama com alarde e volume alto nas caixas sua mensagem de prosperidade. Enquanto isso o povo permanece frustrado... quer cantar e cantam por ele... quer orar, e os louvoristas fazem sua vez. E sobe a temperatura emocional, no templo... não há lugar para a leitura bíblica ou a pregação edificante. Os louvoristas têm a “palavra”, repetida insistentemente, como se fosse a Palavra de Deus, substitutiva, devidamente ensaiada para o momento. E quando termina a louvação os crentes voltam para a dura realidade e as frustrações do dia-a-dia. Mas domingo que vem tem mais. Aleluia!

Em sua teologia egocêntrica, emocional, intimista, falta a ênfase na evangelização cheia, integral, destinada a todos, ação na sociedade, de denúncia, efetividade ética, compromisso cristão na exigência de políticas públicas, de cidadania, dignidade social para todos, enquanto omite-se o Evangelho bíblico da Graça, da misericórdia divina, xáris e hesed, a compaixão de Deus que alcança o homem e a mulher vitimados por desigualdades e opressões espirituais e materiais, pressionados pelos sistemas de pensar alienantes em relação à realidade humana, constantes num mundo impiedoso e sem fé no reinado de Deus. Por desconsiderar as necessidades dos pobres e oprimidos, que se confrontam com poderes injustos, desigualdades sociais; por adotar a ganância ensinada desde a sociedade civil e agora enfatizada nas “igrejas com propósito”. Mas não se pergunta pra que tanto dinheiro e ofertas especiais solicitadas: que propósito, além de arrecadar fundos financeiros, senão para alguém se dar bem? Para quê se precisa tanto, senão para locupletar pastores exibicionistas que moram em condomínios caros, andam em carros de luxo importados, acompanhados por “ministros de segurança” desde os aeroportos com jatinhos particulares, ou fretados? Por quê os executivos do mercado religioso atual têm que ser modelos para os nossos jovens seminaristas ou jovens ministros? Estes executivos religiosos que, quando pegos pelas polícias alfandegárias e presos, passam a “mártires da igreja” milionária. Se é assim, precisaremos ensinar aos mesmos como contrabandear divisas, lesar o fisco, e cortar as páginas de suas Bíblias para nelas transportar dólares contrabandeados. Sem dúvida, uma evolução quanto ao que se ensinava aos andrajosos pastores da Igreja inicial, que iam, a mando do Mestre, apenas com sandálias e embornais transportando água e pão, pelas estradas da Palestina, dormindo nos cantos que se lhes dessem, levando o Evangelho do Reino...

É egocêntrica, a adoração interesseira que prepara a coleta (arrecadação!), porque trata com indiferença a teologia profética contida no Antigo e no Novo Testamentos (preferem uma interpretação literal da Bíblia, em citações sem contexto, convenientemente ao que pretendem...), esquecida nas aclamações de louvor sem causa, e no conteúdo das mensagens dos animadores e avivados do popularíssimo culto gospel (papel dos chamados novos “levitas”). É uma teologia sem cuidado sobre a vida cristã, por ignorar deliberadamente a essência do ministério de Jesus baseada na misericórdia, no despojamento, na disposição para a vida de cruz, enfrentando o sofrimento com causa ensinado no Evangelho; na gratuidade divina. É uma teologia sobre as possibilidades “salvadoras” da “vida de santidade” intimista, sem compromisso social; “vida consagrada” em “ministrações” de louvor abstrato, distanciado das realidades que a salvação pode e deve atingir. Não há lugar para Deus nesse culto, se Ele for o Deus humilde, despojado, esvaziado de poder, dos evangelhos. A palavra-chave é “Deus da vitória”. Além do mais, o culto cristão verdadeiro é um perigo para esses adoradores: o Espírito poderia aparecer e inspirar os crentes a um verdadeiro encontro com Deus... Então, poderiam ouvir Mateus, nosso evangelista, citando o profeta: "misericórdia quero e não sacrifício” [xáris, no NT; hesed no AT]. (Mateus, 9:13; 12:7; Oséias (6:6), enquanto criticava o culto propositista e interesseiro que ameaçava a espiritualidade da comunidade mateusina.

Isaías 60,1-6: O texto refere-se à cidade de Jerusalém, embora seu nome não seja mencionado. A situação da cidade é desanimadora. Estamos no perío­do do pós-exílio babilônico, onde tudo está para ser feito. Se o exílio era amargo, a saída dele e a reconstrução do país foram marcadas por grandes dificuldades. Jerusalém está prostrada por causa de sua população diminuta (como nas pequenas igrejas, não alcançadas pelas extravagantes eclesiologias importadas!), pela falta de recursos e
pela dominação estrangeira (o império persa, agora, sucede ao babílônio, do tempo de Jeremias, Ezequias, desde 598 a.C.), que não permite a organização política dos que retornaram, além de lhes impor pesado tributo. Teria Yahweh abandonado seu povo e a cidade santa?

Mateus 2,1-12: O capítulo 2 de Mateus quer mostrar a missão de Jesus, mestre da justiça. Essa missão se concentra na salvação dos pagãos, aqui representados pelos “magos”. Mas, uma análise detalhada da perícope de hoje nos mostra um verdadeiro drama: - que é o próprio drama das pessoas e da história, no esforço contínuo de se posicionar a favor ou contra Jesus, aceitando ou rejeitando a salvação que ele oferece. O texto tem partes: (vv. 1-5 e vv. 7-12.0 v. 6) que são uma mistura de duas citações bíblicas, funciona como eixo em torno do qual se movem as duas partes. A segunda parte do texto de hoje (vv.7-12) mostra a coerência com a nova forma de entender o mundo. Guiados pela estrela (vv. 9.10; note-se que ela só reaparece “depois que se afastaram de Herodes e de Jerusalém”, centros do poder), chegam a Belém e encontram o menino (vv.9.11). Nesse “menino da periferia” reconhecem o Rei que faz justiça, e se prostram diante dele. De fato, os magos vêem "o menino" (v.11), prostram-se e oferecem tributos. A expressão “o menino e a mãe” faz pensar nos reis de Judá, quase sempre apresentados com sua “mãe” no dia da entronização.

Os magos reconhecem, pois, a nova maneira de exercer a realeza e o poder: com compaixão, misericórdia, cuidado social e solidariedade. Aderem ao reinado de Deus, convertem e participam das intenções que salvam as pessoas a partir do pequeno (Jesus de Nazaré, o menino!), e do pobre, sem poder, sem influência política, na primeira e importante liturgia da Epifania. Não a partir dos poderosos e violentos infanto-exterminadores como Herodes, apoiado pelos sacerdotes religiosos. O v. 6 - posto na boca dos chefes dos sacerdotes e dos doutores da Lei - reúne dois textos bíblicos: Mq 5,1 e 5,2, situando Jerusalém o nascimento do rei dos judeus, e caracterizando a afinidade desse rei: ele é um “chefe que apascentará o povo de Israel”. O verdadeiro tipo de adorador é aquele que, no meio da sociedade conflitiva, ímpia, descobre que a salvação não pode vir pela ação violenta de um poderoso político, nem pela falsa religião, louvação vazia, interesseira, dos religiosos serviçais do prepotente Herodes (estes mal sabendo que já substituíram o objeto de adoração e louvor da tradição bíblica pela reverência ao poder político-econômico). A salvação vem através do pequeno na periferia de Jerusalém, como muitos dos menininhos marginalizados de nossas cidades. Os magos são os primeiros a intuir isso, e seu desejo é o de adorar esse “novo poder” que nasce do pobre para transformar o mundo (vv. 2.11). Eles são guiados por uma “estrela” (vv.2.7.9.10), que exprime as intuições mais puras e os anseios mais profundos da humanidade seden­ta de paz, de justiça social e jurídica, de solidariedade e fraternidade. Herodes, os chefes dos sacerdotes e os doutores da Lei, são religiosos, têm sua bíblia. Por meio delas sabem onde nascerá a espe­rança do povo. Sacerdotes, ministros, governantes, em sua ambição e ganância de dominação e febre de poder procuram ardilosamente eliminá-la, como o rei Saul pretendera, no passado, eliminar Davi (cf. lSm 18,11). Sendo possível, feliz ano novo!

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Derval Dasilio
Pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil
Coordenador: rev.Ricardo César Vasconcelos
Designer: Evelline
Blog: www.derv.wordpress.com
www.paoquentediario.com.br

O anseio do Reino de Deus

“Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”
(Mt 5:5-6)

A terceira e a quarta bem-aventuranças de Mateus são semelhantes em conteúdo e mensagem. Os que choram (os aflitos) são aqueles que, movidos por intenso anseio da vinda do Reino, sofrem e se afligem por isso (Não esqueçamos que Mateus trata de atitudes humanas. A aflição e o sofrimento como condição humana, como um mal, era o tema de Lucas).

Essa atitude, como graça e exigência de Jesus, coincide com a atitude dos que “têm fome e sede de justiça” – ou seja, também um intenso anseio do Reino (pois trata-se da justiça que o Reino de Deus traz consigo). Jesus refere-se assim à justiça segundo a tradição bíblica, que encerra um sentido mais amplo e profundo do que o da simples justiça social nos diversos níveis das relações humanas. Na linguagem bíblica, “justiça” inclui também as justiças históricas e sociais, mesmo sem se referir especificamente a elas.

Na Bíblia (e evidentemente na bem-aventurança), “justiça” (e “justo”) significa objetivamente o resultado da concretização paulatina do Reino de Cristo. Como exigência para o discípulo, significa acolhida e fidelidade a esse Reino e suas exigências, expressas em Jesus Cristo. Em termos de espiritualidade cristã, “justiça” é santidade e “justo” é ser santo. Mais adiante Mateus fala da mesma idéia na boca de Jesus: ¨Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5:20); “Buscai em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas as coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6:33) – mais uma vez “justiça” refere-se ao Reino e às exigências de fidelidade a ele (a santidade).

A justiça e a santidade do Reino, como graça e exigência, começam pela conversão dos corações e a transformação das pessoas, caminhando rumo à plenitude do amor e da liberdade em Cristo. Essa libertação interior expulsa o egoísmo e as servidões da cegueira e do pecado. Foi assim que Jesus nos ensinou: “O Reino de Deus começa dentro de nós”; “devemos renascer para uma vida nova”; “quem perde a sua vida (de injustiça e pecado) a encontra (transformada segundo o Reino)”; “o grão de trigo deve perecer (egoísmo) para dar fruto (de santidade)”...

Mas a santidade e a justiça do Reino também têm uma dimensão social: todas as realidades humanas devem ser redimidas e santificadas “para que Deus seja tudo em todos”. Cristo veio e entregou sua vida para que os valores do Reino impregnem não só os indivíduos, mas também a família, a economia, a cultura, a política e todas as relações sociais. Essa afirmação já constitui um lugar comum no ensinamento da Igreja, mas adquire uma relevância especial onde a sociedade é escandalosamente injusta e distante dos ideais do Reino e da santidade.

Quanto mais forte for o pecado social e mais fraca a influência da lei de Cristo na sociedade, tanto mais a justiça bíblica evocará e privilegiará a justiça social. Nesse caso (como é o povo da América Latina), a aflição e a fome e sede do Reino que Jesus pede a seus seguidores assumirão uma forte tônica de justiça social, de libertação dos pobres e oprimidos e de exigência de luta por uma sociedade melhor (mais fiel aos valores do Reino, mais santa).

É nessa bem-aventurança que se encontra a raiz e o sentido daquilo em que a Igreja tem insistido tanto: que a construção do Reino de Deus é inseparável do esforço pela justiça e que a santidade cristã exige o serviço ao pobre e o compromisso com sua libertação integral.

A promessa que acompanha essa bem-aventurança é significativa: aqueles que dela participam serão consolados e saciados. O Reino virá, para eles e para os outros, na medida do seu intenso anseio da vinda do Reino. Só encontramos Deus na medida em que o desejamos; da mesma forma, o Reino só se constrói na medida em que desejamos eficazmente a sua vinda. O caminho de toda santidade começa pelo desejo de ser santo. A justiça social avança na medida em que haja homens que a desejem ardente e eficazmente.

Isso tudo nos revela que a santidade, os valores do Reino, a libertação e a justiça no mundo nos são dados em forma de promessa. Trata-se de um dom de Deus, uma graça. Não são apenas o resultado do esforço e do compromisso dos homens, por mais eficazes e bem-intencionados que sejam. O Reino e sua santidade representam a eclosão do amor gratuito de Deus na história; suas exigências e valores superam as possibilidades da condição humana. A justiça bíblica nos é oferecida como graça porque, para Jesus, o homem é mais do que o homem. E a graça deve ser desejada, pedida e acolhida no espírito das bem-aventuranças.

A EVANGELIZAÇÃO, OBRA DO ESPÍRITO

Essa bem-aventurança nos fornece três ensinamentos essenciais no que se refere à Missão; ensinamentos que comportam outras tantas exigências de espiritualidade, necessárias para que nossa evangelização seja cristã.

1 – Toda evangelização deve conduzir ao crescimento na justiça (santidade) entre os homens. Sua meta é sempre a conversão (o mais explicitamente possível) a Jesus Cristo e seu Evangelho. A vocação do homem é uma vocação para a santidade. Assim, evangelizar é gerar justos, que por seu turno desejarão intensamente que a justiça se propague.

Essa dimensão é insubstituível na Missão e na comunidade que a realiza, pois ninguém pode dar o que não tem. É bem verdade que a evangelização é uma tarefa complexa, que deve cobrir etapas e às vezes um longo itinerário antes de propor o núcleo de sua mensagem religiosa. Também é verdade que as libertações históricas, a solidariedade e a justiça, como o crescimento dos valores culturais, são aspectos inseparáveis do Reino e da evangelização. Contribuem para o Reino e a evangelização, mas por si sós não são o Reino e não constituem o elemento específico da evangelização. Esta se dá quando Cristo é aceito e seguido – e os homens são transformados, a partir do seu interior, de pecadores em justos e de egoístas em filhos de Deus e irmãos dos outros homens.

2 – Em sua dimensão mais profunda, a evangelização é obra do Espírito de Deus. É a graça gratuita de Deus Pai, que por amor quer transformar o mundo pecador e injusto em imagem do seu Reino. Mesmo quando bem inspirados e comprometidos, os homens são incapazes de tal tarefa. Nenhuma atividade humana pode construir o Reino e sua justiça. Somente Jesus pode nos trazer o Reino – Jesus que é o amor encarnado e salvador de Deus. Jesus, que faz possível que o Reino e sua justiça venham através de sua vida, morte e ressurreição.

A evangelização é obra de Deus, que enviou o seu Filho. E essa obra continua na Igreja, indissoluvelmente unida à Missão de Jesus graças ao Espírito que dele recebeu. É o Espírito que está na Igreja quem, em última instância, converte e constrói o Reino, fazendo “novas todas as coisas” e trazendo a justiça aos corações e às sociedades. Se, por um lado, o homem entregue a si mesmo é incapaz de evangelizar, por outro ele sabe que o resultado de sua missão vai muito além de seus limites e do constatável. Aquilo que o Espírito realiza na evangelização supera os meios de ação da Igreja e dos evangelizadores.

A mensagem da bem-aventurança é uma mensagem de confiança e esperança na eficácia da Missão. Duvidar de nossa ação evangelizadora significa duvidar do amor de Jesus e da eficácia do seu Espírito. E aqui, mais uma vez, Jesus é novamente modelo da bem-aventurança: ninguém como ele demonstra tanta aflição e fome e sede da vinda da justiça do Reino entre nós. Nossos anseios e desejos e justiça nada são em comparação com os anseios e desejos da vinda do Reino que consumiam Jesus – e que hoje operam na Igreja por meio de seu Espírito.

Evangelizar é identificar-se com o ardente anseio de justiça do Jesus bem-aventurado e evangelizador, é entregar-se ao movimento missionário do seu Espírito. No entanto, com a humilde convicção de que o Espírito tem caminhos que não são os nossos, soprando onde e quando ele quer (Jo 3:8).

3 – A mística da evangelização é uma síntese de atitudes em tensão: anseio ardente, consciência dos próprios limites e impotência, confiante esperança. Se forem autênticas, essas atitudes farão brotar a oração.

E a oração é uma necessidade da Igreja missionária: é o reconhecimento prático de nossa impotência para evangelizar e de nossa convicção de que a Missão não é apenas a utilização dos meios de ação, mas sobretudo a obra do Espírito que opera em nós.

Orar é abrir-se para o Deus que preenche nossas limitações, é deixar-se invadir por sua justiça para construir justiça nos outros, é colaborar com a obra libertadora do Espírito, que age na raiz das consciências, chegando onde os meios de ação não podem chegar.

A oração do evangelizador é a resposta cristã ao fato de que o Reino da justiça é um dom de Deus, devendo portanto ser desejado e pedido. É a resposta ao fato de que aquele que trabalha pela justiça do Reino deve viver ele próprio a justiça. É a resposta ao fato de que toda justiça e santidade provêm de Deus e devem ser recebidas como graça. Maranatha! “Venha o teu Reino!”
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Texto de Segundo Galilea, extraído das págs. 69 a 75 do livro Espiritualidade da Evangelização segundo as bem-aventuranças”, publicado em 1980 pela Edições Paulinas.

02 janeiro, 2008

O Evangelho da verdadeira paz

“Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus”
(Mt 5:9)

Esta bem-aventurança não se refere somente aos “pacíficos” (aqueles que fazem tudo o que está ao seu alcance para viver em paz com os outros), mas também aos que trabalham e se comprometem positivamente em favor da paz, àqueles que, em seu ambiente de vida, trabalho e influência, contribuem para construir a paz.

“Promover a Paz” é favorecer a aproximação, a reconciliação e, portanto, a fraternidade e a comunhão de pessoas, famílias, grupos sociais divididos ou em conflito. Essa atitude é uma bem-aventurança porque com ela participamos da atitude de Cristo bem-aventurado e evangelizador, cuja missão é justamente descrita na Bíblia como restauração da conciliação e da paz definitivas dos homens com Deus e dos homens entre si, através da dispersão e ruptura do pecado, do ódio e da injustiça.

Isaías refere-se ao Cristo que viria como o “Príncipe da Paz” (Isaías 9:5) e à obra de seu Reino como a realização da verdadeira paz entre os homens: “Um grande principado com uma paz sem fim” (Is 9:6). “Converterão suas espadas em enxadas e suas lanças em foices; já não levantará espada povo contra povo, nem se adestrarão mais para a guerra” (Is 2:4); “Habitarão juntos o lobo e o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito” (Is 11:6).

Na perspectiva bíblica, o advento da paz entre os homens torna-se possível na medida em que eles se reconciliam com Deus e retornam à comunhão com Ele: estar em paz com Deus é a condição evangélica para promover a paz entre os homens. A evangelização é “proclamar um ano de graça (reconciliação) do Senhor” (Lc 4:9) e o evangelizador é o “mensageiro que anuncia a paz (cf. Rm 10:15). A paz é o fruto da redenção de Cristo, feito vítima pela reconciliação: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo dá” (Jo 14:27); “Paz a vós!” (Jo 20:19); “Ele é a nossa paz: de ambos os povos fez um só, tendo derrubado o muro de separação e suprimido em sua carne a inimizade (...), estabelecendo a paz e reconciliando a ambos com Deus” (Ef 2:14-16).

Em suma, promover a paz é evangelizar, é consolidar a comunhão dos homens com Deus Pai e entre si.

Mas como trabalhar pela verdadeira paz, a que provém do Evangelho de Deus? Como evitar a paz enganosa, baseada no temor, na força ou na institucionalização da divisão e da injustiça? O núcleo da resposta já nos foi dado na bem-aventurança anterior, que prepara a compreensão cristã da paz: a paz se constrói mediante a prática da misericórdia.

A paz leva à solidariedade com o irmão necessitado, à sua libertação das misérias e, por conseguinte, à restauração da justiça. A misericórdia leva ao perdão das ofensas e à reconciliação. Na perspectiva da evangelização segundo as bem-aventuranças, a paz é obra da justiça e do perdão, indissociáveis no mandamento da misericórdia.

No capítulo anterior refletimos sobre a misericórdia como compromisso eficaz com o irmão, como criadora de fraternidade e comunhão. Agora, reflitamos sobre o perdão e a reconciliação como o outro caminho necessário para assegurar a comunhão e a paz.

O SERVIÇO DA RECONCILIAÇÃO

A evangelização pode ser identificada tanto em termos de libertação para a fraternidade como em termos de reconciliação. Libertação e reconciliação são elementos complementares na perspectiva da missão e de sua espiritualidade: ambas são elementos históricos constitutivos da fraternidade cristã. A evangelização segundo as bem-aventuranças é um ministério de reconciliação para a fraternidade e a paz.

O que é propriamente a reconciliação?
A reconciliação é o retorno à amizade ou à irmandade em pessoas, famílias, grupos sociais ou nações que, apesar de chamados a ser irmãos, romperam em sua irmandade ou amizade. Assim a reconciliação é mais que simples conciliação (que é um acordo mais ou menos provisório entre as partes): é a restauração da irmandade destruída. Daí o fato de que a reconciliação tenha sempre a forma de um “retorno”, de uma reconstrução, de um reencontro.

Evidentemente, a idéia da reconciliação não é privativa do cristianismo, ainda que tenha servido adequadamente para formular o sentido da obra de Cristo: reconciliar os homens com Deus e entre si. A idéia da reconciliação também vigora nas relações humanas, sociais e políticas. Os políticos falam de “reconciliação nacional”, de reconciliação nos conflitos ou nos confrontos entre países. Isso porque a idéia de reconciliação corresponde a um ideal humano e a uma lei da sociedade. A história das sociedades e dos povos não está impregnada somente pela dialética dos conflitos e injustiças de uns contra os outros, mas também pelos esforços em prol do restabelecimento da paz, do entendimento e da reconciliação.

Mas o discurso da reconciliação é freqüentemente insuficiente e interessado (ideologizado) no mundo político, sendo muitas vezes levantado como um ideal para encobrir injustiças e conflitos legítimos são resolvidos. A reconciliação, portanto, não pode ser um manto para ocultar os abusos e pecados sociais.

É necessário então colocar a reconciliação em sua perspectiva evangélica e anunciá-la com todas as suas exigências na missão. As exigências da reconciliação cristã são as exigências da paz, que é a reconciliação consolidada: a justiça e o perdão.

1. Restabelecer a justiça é uma condição para a reconciliação cristã. De imediato, uma das causas habituais da divisão e da deterioração das relações dos grupos ou povos que por vocação (história, proximidade, laços humanos) estão chamados a viver como irmãos é constituída pelas injustiças – as diversas formas de abuso e exploração do homem pelo homem. Em condições de persistência da injustiça, propor simplesmente a reconciliação não é realista e, salvo casos de muita maturidade evangélica, supera as dondições da psicologia humana. Por isso, em continuidade com a tradição bíblica (desde o profeta Isaías), a Igreja ensina que a reconciliação que leva à verdadeira paz é obra da justiça (cf. Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes 78; Pacem in Terris 167; Popolorum Progressio 76; Medellín, Paz 14).

O avanço da justiça desobstrui o caminho dos obstáculos, conflitos e rancores provocados pelas injustiças e abusos, preparando assim a reconciliação. Mas isso não é suficiente: um acordo justo, a superação das injustiças e a satisfação das partes não bastam para recriar a irmandade. A irmandade é algo que vai além da simples justiça: ela pressupõe o restabelecimento do encontro e das formas de comunhão. Pode-se viver numa situação de justiça, mas distantes e receosos. Uma comunidade pode realizar a justiça –ninguém tem reclamações a fazer de ninguém- e não praticar o amor e a misericórdia. Há justiças muito frias.

O que acontece é que a simples realização da justiça depois dos conflitos não basta para apagar as feridas e ofensas deixadas por esses conflitos. Uma característica dos confrontos humanos é que, em seu desenrolar, as partes se ofendem e ferem mutuamente. Essas ofensas são algo objetivo, cuja lembrança e cujas conseqüências persistem para além da justiça posteriormente alcançada. Depois dos conflitos, as pessoas afetadas guardam queixas uns dos outros. Isso impede a culminação do processo de reconciliação e o restabelecimento da amizade ou irmandade perdida.


2. Sendo assim, o perdão mútuo das ofensas é igualmente necessário para a reconciliação e a consolidação da paz, em pessoas, famílias, grupos sociais, nações. Só o perdão pode fazer superar os vestígios do conflito, deixando realmente livre o caminho da reconciliação. Perdoar é usar de misericórdia – e a misericórdia vai além da justiça e das libertações humanas.

Na perspectiva do Novo Testamento, a reconciliação e a paz também são obras do perdão, o que foi sintetizado nas bem-aventuranças da misericórdia e dos que promovem a paz. Essa exigência, com a qual Jesus completou a antiga Lei, desde então faz parte da mensagem cristã: “Ouviste o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu porém vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; deste modo vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre justos e injustos. Com efeito, se amais aos que vos amam, que recompensa tendes?” (Mt 5:43-46). A forma prática de amar o inimigo é perdoá-lo e estar disposto a reconciliar-se com ele quando se dêem as condições para tanto.

A necessidade do perdão para recriar toda uma convivência humana não é só uma exigência do cristianismo e de sua espiritualidade. Também na vida política os homens estão conscientes dessa necessidade: eles sabem que, sem um esforço para esquecer ofensas do passado e curar as feridas, torna-se muito difícil a “reconciliação nacional” depois dos conflitos. É a esse objetivo que correspondem as anistias, que constituem a versão profana, política, do perdão. A anistia que se concede depois dos conflitos não é, por si só, a reconciliação, mas cria as condições políticas para facilitar um “novo começo” e criar um ambiente de reconciliação e possibilidade de perdão. Quando promovida com base na justiça, a anistia (de todas as partes afetadas) é um meio eficaz para a reconciliação nos grupos humanos.

Contudo, deve-se recordar que a reconciliação é uma exigência que deve acompanhar os processos de conflito desde o começo e não aparecer somente no fim, depois de superados os confrontos e alcançado um acordo. Não se pode esquecer que a meta da convivência e das relações sociais em todos os seus níveis –também nos processos de luta e conflito- é a reconciliação dos homens e dos grupos sociais. Se essa meta não estiver presente desde o começo, então o perdão e a reconciliação podem se tornar extremamente difíceis no final. Mesmo durante os conflitos a idéia da vocação para a reconciliação deve se achar presente, para que não se frustre ao chegar ao seu momento. Assim, desde o início, a exigência de reconciliação contribui para humanizar os conflitos.

Os conflitos entre várias partes e a luta social (inclusive guerras) podem seguir um processo humanizado ou desumanizado. Os confrontos também devem se reger pela ética. Em boa parte, essa ética consiste no respeito aos direitos humanos, inclusive para os protagonistas da luta. O respeito aos direitos humanos por todas as partes em litígio é o que humaniza os conflitos. A violação dos direitos humanos desumaniza o conflito, abrindo feridas e criando ofensas desnecessárias, que a longo prazo constituem um grave obstáculo no momento da reconciliação.

Ao dizer que a mística da reconciliação deve acompanhar desde o início os conflitos humanos, queremos dizer que ela não deve ser apenas uma aspiração a ser promovida uma vez terminados os confrontos, mas sim um fator operante durante todo o processo do conflito, criando uma atitude humanizante nesse processo. A vivência da mística da reconciliação se expressa primordialmente no respeito à ética e aos direitos humanos durante os confrontos. Isso facilita grandemente a disposição de anistia, perdão e reconciliação. Os abusos, as crueldades, as vinganças e toda a força de violação da dignidade humana durante os conflitos dividem e destroem de tal forma a irmandade que, na hora de colocar a exigência de reconstruí-la, é preciso uma atitude espiritual que, de fato, não se pode pedir a todos. Nesse caso, tem-se que esperar uma ou duas gerações para restabelecer as condições de serenidade que tornem possível a reconciliação.

Evangelizar é anunciar ao mesmo tempo a justiça libertadora e a reconciliação, é ensinar as pessoas a se identificarem com os pobres e oprimidos e, ao mesmo tempo, a perdoarem. Não se pode criar a comunhão humana sem essas duas dimensões. Evangelizar no espírito das bem-aventuranças significa seguir Cristo libertador e misericordioso, transmitir a seus discípulos ambas as atitudes, construir a fraternidade cristã com base na justiça e na reconciliação.

Naturalmente, sintetizar essas exigências no calor da realidade não é fácil. Isso requer dos evangelizadores uma espiritualidade madura e, na prática da evangelização, requer sabedoria e pedagogia. Nesse terreno, caminha-se sempre entre os abismos do fomento aos rancores que dividem e da falsa unidade da resignação conformista. A verdade é que a reconciliação é necessária não como um luxo, mas sim para que a justiça seja consistente e parta que a libertação seja humanizante – portanto, para que não se criem novas opressões e injustiças. E a justiça é necessária para que a reconciliação seja viável e permanente.

Na prática da evangelização, torna-se necessário de fato um discernimento da oportunidade pedagógica. Quando acentuar o tema da luta pela justiça e quando acentuar o tema do perdão e da reconciliação? O discernimento não se apresenta em termos de exclusão de um ou outro, mas em termos de oportunidade e ênfase. Em certas situações, o chamado à reconciliação pode ser tão profético como a denúncia das opressões e em outras situações pode ser interpretado como legitimação das injustiças. O que o Evangelho nos pede é manter a síntese das bem-aventuranças, evitando a tentação da uniteralidade sistemática.

Em última análise, trata-se de reconstruir a fraternidade cristã. Ela é o único sinal da verdadeira paz –evangelizar é promover a paz.

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Texto de Segundo Galilea, extraído das págs. 91 a 100 do livro Espiritualidade da Evangelização segundo as bem-aventuranças”, publicado em 1980 pela Edições Paulinas.

01 janeiro, 2008

Para que igrejas avivadas em um mundo morto?

André Botelho (*)

O reverso do delírio paranóico do deus onipotente e da Igreja Ultra-Potente é o Deus que se revelou como fraqueza e confiou à Igreja seu carisma para salvar o mundo.

Uma espécie de consciência febricitante domina a Igreja em nossos dias fazendo-a pensar que não avança missionariamente porque lhe falta poder. Ora, poder significa dispor de força e autoridade ou ainda ter grande influência ou domínio sobre outrem. É neste sentido que, não muito longe, já vimos a sede de poder transformar a Missão da Igreja num exercício de força e intolerância. Percebemos que a obsessão pelo poder pode gerar o desprezo do carisma, levando a Igreja a caminhos nada cristãos. Pode tornar suas orações, celebrações, e, acredite, até a sua piedade em meros atos pagãos. O poder temporal em si não é um mal, contudo, se instrumentalizado em benefício próprio, torna-se meio de exclusão e opressão. Quem já leu um pouquinho acerca da longa História da Igreja ? e sua relação com o poder dos príncipes ? não custou a perceber que a sedução do poder tornou o “Céu” o perpétuo lugar de Deus e a Terra a eterna realeza da toda-poderosa Igreja.

Hoje, aqui, muitas vezes distraídos, enquanto sonhamos com poder e em como tornar a Igreja mais poderosa, o mundo anseia por uma Congregação Cristã de humildade e fraternidade. Os desafios do tempo presente que interpelam a comunidade da fé são os clamores por uma instituição com carisma e não com poder ? no sentido de potestas.

Muitas instituições poderosas existem no mundo, mas os seus poderes não têm funcionado para resolver seus próprios defeitos morais, suas mazelas e suas injustiças. Carisma é a graça divina estampada no rosto de uma Igreja que não se fechou diante do desafio da evangelização e da humanização do mundo. Uma Igreja com poder fala e impõe, uma Igreja com carisma ouve e serve. O mundo resiste ao poder, mas acolhe o carisma. O poder cansa, o carisma renova.
Já não é a Igreja de Jesus Cristo cheia da Graça de Deus? Precisaria ela de mais poder? Não seria porventura o mundo quem, de fato, precisa de um avivamento urgente? Sobre isso penso ser inadiável um diálogo aberto.

Muitas vezes a Igreja pode estar lutando por conservar estruturas internas de poder, ao invés de manifestar abertamente a graça de Deus aos homens. Tomemos como exemplo a Igreja do Novo Testamento: apesar de suas muitas deficiências, mantinha-se como comunidade de grande vitalidade missionária. Era carismática no serviço! Se hoje somos “carismáticos” no poder, é porque nos falta poder de Deus para sermos carismáticos. Somos “avivados” na celebração e ultra-tradicionalistas na Missão! A Igreja pode ter recursos, conexões, instituições, mas ainda assim não ter influência alguma sobre a realidade e a sociedade. Apesar de sucessivos “avivamentos”, a Igreja permanece conservadora, na contramão da História e em extrema fragilidade moral e institucional, pois luz não se ouve ? luz se vê!

É desesperador notar como “carismáticos” de carteirinha não conseguem dialogar um minuto sequer sobre Missão de verdade. É neste sentido e por isto que devemos defender um diálogo franco e urgente em torno do verdadeiro significado da renovação espiritual para os dias de hoje. A Igreja deve mudar o foco do avivamento! Deve buscar uma renovação de sua consciência, precedida de uma conversão radical do seu coração. Precisa viver uma kénosis (esvaziamento total) de qualquer tipo de poder cultivado em seu interior incompatível com a sua verdadeira vocação cristã. Assim, ela deve perseverar na Fé e manter-se pura diante da tentação de prostituir-se com poderes partidários egoístas e mesquinhos, perdendo a única autoridade conferida por Deus a si: que é a de ouvir, servir, denunciar-profetizar e, se preciso for, colocar-se no lugar de quem sofre e morrer com os que morrem.

Se muitos falam de unção como poder, poucos falam de poder como unção para servir. Linhas “carismáticas” extremadas são dadas como o modelo ideal de povo de Deus em quase todas as igrejas do nosso país, mas nem sempre as atitudes revelam a misericórdia e o amor revelados em Jesus de Nazaré. Diante do testemunho do Senhor não resistem argumentos: importa amar ou amar! Quem vive buscando mais poder para a Igreja nega a Graça de Deus que nela está. Quem vive esperando mais poder acaba tornando-se fraco e omisso diante do desafio que diante de si está por fazer. Para que servem igrejas avivadas em um mundo morto?

Acredito que a expectativa do mundo seja por uma Igreja muito mais humana e amorosa do que “avivada” e “poderosa”. Acredito que o mundo deseje ardentemente aquilo que a Igreja tem recebido e que deve compartilhar consigo: a Graça de Deus transformada em Carisma Eclesial. Somos Igreja não porque merecemos ou decidimos, mas porque o amor de Deus está entre nós; é unicamente neste sentido que podemos pregar a “conversão de todos os povos” e imaginar uma Igreja: uma comunidade de irmãos dinamizada pelo amor gratuito de Deus e que se organiza conscientemente como fraternidade radical.

Poder não gostamos de repartir. Poder gera divisão entre nós: normalmente afasta, exclui e “cria” ungidos. Carisma aproxima e realiza!

Precisamos, por isso, de um novo avivamento que nos ensine a compartilhar a Graça de Deus em nós com o mundo. Precisamos de uma renovação espiritual constante que nos mantenha sempre abertos para o amor e para o serviço. Que nos ensine que o Poder de Deus não é outro que não o poder de amar e servir, isto é, o inverso do delírio paranóico de uma Grande Igreja Ultra-Poderosa. Nossa inspiração não pode ser fabulosa, sustentada na imagem de um deus onipotente. Nossa inspiração é concreta, revelada no testemunho do Deus poderoso no amor, que se fez fraqueza e sacrifício vivo em Jesus Cristo e que confiou na fraqueza dos homens tornada Igreja a sua Graça para salvar o mundo re-criando a Criação.

E é exatamente por isto que Deus não pode usar o poder da Igreja para salvar o mundo, mas apenas a sua fraqueza confessada.

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(*) Rev. André Botelho, pastor da Igreja Metodista em Jardim Oceânico, RJ.

31 dezembro, 2007

Os Amigos e os Inimigos do Messias

“...Logo que o encontrarem, avisem-me, para que eu também vá adorá-lo”.

A primeira vinda do Messias – gerado miraculosamente e nascido desinstaladamente – foi o cumprimento de promessas proféticas. As estrelas e os anjos lhe emprestam um caráter cósmico; os pastores e os magos sinalizam o seu caráter terreno, histórico. As Boas Novas transformariam vidas individuais e relacionamentos, no grande milagre da metanóia (salvação e santidade), mas a sua destinação deveria ser muito mais ampla: a sinalização do Reino de Deus e seus valores diante dos anti-valores do anti-reino das trevas e da morte.

Daí, o seu primeiro conflito foi de natureza política. O rei Herodes se sentiu ameaçado em seu trono, procurou (como muitos políticos, e não-políticos) “levar na conversa” os magos, com a demagogia e a insinceridade de procurar saber onde estava o menino, para ir e também adorar. Os magos, advertidos pelo céu, literalmente saíram pela tangente, e o rei, furioso, provocou um infanticídio coletivo, mandando matar todos os meninos de Belém, que tivessem de dois anos para baixo. Advertido em sonho, José toma Maria e a criança e vão para o Egito como refugiados políticos, somente voltando após a morte do tirano. Ao longo da História – e hoje – quantos tiranos forçaram milhares de pessoas a sair de suas terras e viverem em condições miseráveis como refugiados? "Quando o Evangelho é anunciado em sua plenitude acaba sempre batendo de frente com os poderes deste mundo: político, econômico, social, cultural, religioso. O Evangelho desinstala, subverte, ameaça com a ordem de Deus a desordem do mundo.

Hoje, além do fanatismo religioso anti-cristão, que gera um novo ciclo de martírio, discriminação e privação, de parte dos crescentes setores extremados das grandes religiões, temos a sua negação pelo racionalismo ocidental fora e dentro das Igrejas, e a própria festa tomada pelos símbolos do secularismo consumista.

Concordo com o Rev. Ramacés Hartwig, nosso clérigo na Paraíba, que a nossa reação não pode se restringir ao mero lamento, ao mero discurso de denúncia ou a uma necessária renovação do anúncio, mas a um embate de símbolos, com a decoração de motivos natalinos cristãos nos lares e nos templos. No lugar de Papai Noel, o Presépio e a Coroa do Advento, para darmos dois exemplos.

Um Evangelho que não incomoda os Herodes da nossa época; um Evangelho que ainda não se concretizou em Boas Novas para os pobres; um Evangelho que não motiva uma batalha no campo das artes, dos símbolos e do lúdico, é um Evangelho distorcido, parcializado. Alguma coisa está faltando. Os cristãos ultra-místicos que retiram o Evangelho da História para o recôndito da alma, o outro mundo ou o fim do mundo, e os cristãos, que em sua iconoclastia, despojamento, falta de sensibilidade artística ou anti-romanismo primário, procuram enfrentar os símbolos secularizantes com quatro paredes caiadas e um sermão raivoso, se tornam (tantas vezes como inocentes úteis) aliados dos inimigos do Messias.

Cristo Nasceu! Cristo está Nascendo! Cristo Renascerá! "Um abençoado natal para toda comunidade diocesana Anglicana do Recife – territorial e extraterritorial –, para nossos irmãos e amigos em todos os rincões, porque as novas de grande alegria “será para todo o povo” (Lc 2;10b).

Recife (PE), 20 de dezembro de 2007.

+Dom Robinson Cavalcanti

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Texto extraído da Agência Soma.

Mensagem para 2008

"Deus é bom, mais do que pensamos ou acreditamos,
mais do que dizem nossas interpretações da Bíblia e da Moral.
Deus ama o homem com um desvelo surpreendente;
há uma paixão que se fez Paixão em Cristo.

É preciso reabrir sempre o horizonte da confiança
e reafirmar, cada dia, a fé nesse amor esplêndido de Deus.
Acostumamo-nos facilmente a medir o coração de Deus
pelas estreitezas do nosso coração humano."

(Pedro Casaldáglia)

"O Cristianismo é Palavra encarnada
e não somente palavra convertida em palavra.
(...) ser testemunha de Cristo
é encarnar a Palavra do Cristo em ações concretas".

(Pedro Casaldáglia)