17 setembro, 2008

A cidadania como exercício da santidade (Robinson Cavancanti)


Introdução

Com a certidão de nascimento, primeiro, e com a carteira de identidade, depois, todos nós somos possuidores de título de sócios de nosso País. O mesmo acontece, guardadas as diferenças dos sistemas legais, com cidadãos dos demais países do globo. Como seres sociais, somos naturalmente seres políticos. Não há uma escolha de exercermos ou não a nossa cidadania. A questão é como a exercemos: com consciência e responsabilidade ou de modo alienado e irresponsável. Há uma ética da cidadania, que é a base para toda ética social. Isso se relaciona, intimamente, com a compreensão do propósito para as nossas vidas.


1. O ponto de Partida: Deus

O nosso ponto de partida é o Deus que adoramos e o seu propósito para a sua criação. O Deus que adoramos criou todas as coisas e as sustenta pela força do seu poder. Dele é o universo. O nosso Deus é o Senhor cósmico, e toda a ordem criada –criada por Ele mesmo- está debaixo de suas mãos. Este planeta terra está sob o seu senhorio, o que inclui todos os seres e instituições. Em nossa adoração proclamamos: O Senhor reina!

Do coração perfeito de Deus sai um plano perfeito para a sua criação. A ordem da Criação –o Éden- seria perfeita, boa, agradável, justa, pacífica. Deus reinaria sobre nós totalmente. Talvez pudéssemos fazer um exercício de abstração e imaginar como seria o nosso caráter naquele estado de coisas paradisíacas se aquele estado de coisas tivesse permanecido. Como seria a vida social? Como seriam os relacionamentos entre as pessoas?

Essa ordem das coisas foi radicalmente afetada pela Queda, pelo pecado, que nos aliena de Deus, que nos aliena do resto da criação, que nos aliena de nós próprios e que nos aliena do outro. Há uma mudança na natureza dos seres, e mudança para pior, para o mal. Passamos a viver na História. Uma História que tem, toda ela, a marca da transitoriedade. Uma História que terá um final. Final que não será término, mas recomeço e restauração. A velha terra e o velho céu passarão. Um novo céu e uma nova terra serão inaugurados. Poderíamos denominá-los de Ordem da Restauração. Ontológica e moralmente voltaremos ao ponto de partida. As alienações serão curadas. Viveremos a plenitude do Reino.

Por dois mil anos temos confessado nos Credos que “ele voltará para julgar os vivos e mos mortos e o seu Reino não terá fim”.

A ordem da Criação e a Ordem da restauração, para nós que vivemos na História, são uma permanente lembrança dos propósitos de Deus. São parâmetros, modelos, ideais com os quais estamos comprometidos e para os quais fomos destinados.

Na História não estamos abandonados. Continuamos a ser a primícia da criação. Continuamos a ser portadores de dignidade, como criados à imagem e semelhança de Deus. Continuamos a ser objetos do seu amor. Esta terra não está à deriva. Deus é o Senhor da História. A nossa passagem por aqui tem um propósito. O Deus da História é o Deus da Providência: é o Deus que está providenciando a superação desse estado de coisas, enquanto age nesse estado de coisas. Como nos lembra um teólogo, Ele é o Deus que intervém.

Ele é o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus da Aliança, que liberta o seu povo da opressão de Faraó e conduz à terra de Canaã. É o Deus que se revela moralmente na Lei. É o Deus que outrora falou por seus servos profetas. É o Deus que estava em Cristo e que, na plenitude dos tempos, nos assegura a redenção pelo escândalo da cruz, anunciando a vitória sobre o pecado e a morte.

O Deus da Providência, que em sua primeira Aliança suscita um povo para exercitar o culto correto, para viver padrões morais superiores e para organizar a sua vida nacional de forma superior. Um culto monoteísta de um povo que não devia furtar ou matar em um país onde não haveria desigualdade, pois até a reforma agrária cíclica tinha sido por Ele providenciada nas instituições do Ano Sabático e do Ano do Jubileu.

O Deus da providência, que em sua segunda Aliança suscita um povo de todos os povos, feito nova criatura, assistido pelo Espírito Santo, enviado a todos os povos com uma mensagem poderosa, geradora de novas criaturas, criaturas transformadas e transformadoras.

Na Antiga e na Nova Aliança o objeto do seu povo é ser “bênção para as nações”.

O nosso Deus é um Deus moral. Santo é o Senhor. Um Deus perfeito em caráter, que cria seres perfeitos em caráter, que abomina o pecado e a falta de caráter do povo caído, e que quer restaurar o caráter de seu povo.

A Lei nos mostra a distância onde nos encontramos em relação a essa perfeição, servindo de parâmetro, ideal, alvo ético a ser perseguido. O servo de Deus nunca está satisfeito com a sua situação moral, mas é um ser em movimento, sendo transformado de glória em glória, deixando coisas e avançando em direção ao alvo.


2. A Questão Central: O Reino.

A questão central, então é o Reino de Deus. René Padilla sempre nos chama a atenção para o “ainda não” e o “já” do Reino. Esse Reino “ainda não” vivencia a sua plenitude, mas ele “já” existe, “já” está entre nós. Deus “já” reina sobre o universo, a terra, a História, os homens e, particularmente, sobre o povo que reconhece o seu senhorio.

O nosso Evangelho é o Evangelho do Reino. O Reino é atestado por marcas de santidade no caráter, como o amor, a bondade, a mansidão. O Reino é igualmente atestado pela implementação de valores sociais como a justiça e a paz. O Reino é ainda atestado pela nossa inconformação, nossa rejeição e atitude crítica em relação ao estado de coisas contrário ao modelo de Deus -o anti-reino das trevas- e pela renovação da nossa mente, que sintoniza a mente de Cristo e agora consegue ver além da mera letra.

Nesse sentido, temos que colocar o mal em seu devido lugar. Faltam com a verdade bíblica e a tradição da Igreja as correntes teológicas que, influenciadas pelo racionalismo iluminista, negam a existência de satanás e seus anjos e a natureza da luta espiritual que travamos hoje. Igualmente faltam com a verdade bíblica e a tradição da Igreja, as correntes teológicas que superdimencionam o poder satânico, caindo, na prática, em um dualismo, transformando a terra em uma província rebelada do universo sob a gerência do demônio.

Isso é uma heresia. Reduz-se o poder de Deus. Joga-se Deus para fora da História. Nega-se a sua providência. Minimiza-se os efeitos da cruz. Não e não! O Senhor dessa terra, o Senhor de nossa História, não é satanás, mas o nosso Deus, poderoso e vitorioso.

O “mundo” que jaz no maligno não é a Criação de Deus, mas todos os sistemas que se afastam do modelo de Deus. Esses sistemas de corrupção, de falsidade, de opressão são o “mundo maligno”. Sistemas políticos, econômicos, sociais, culturais ou religiosos.

A Missão do povo de Deus implica em anunciar o Evangelho do Reino, que é Boa Nova. Boa Nova de que estaremos na nova terra. Boa Nova de que a morte foi vencida. Boa Nova de que satanás foi derrotado. Boa Nova de que o amor de Deus chegou até nós. Mas também, Boa Nova para os cegos, os coxos e os aleijados, para os enfermos do corpo, da mente e da alma. Boa Nova para os oprimidos pelos espírito imundos –sejam eles espíritos feios ou charmosos, em preto e branco ou coloridos- porque esses demônios serão expulsos. Boa Nova para os cativos dos sistemas injustos. Boa Nova para os pobres. Boa Nova porque a sua presença faz uma diferença concreta, real, não abstrata, metafísica, etérea, ectoplásmica.

Não somos gregos, não anunciamos Boas Novas metafísicas, mas Boas Novas históricas. Não anunciamos um Reino metafísico e futurista, mas um Reino que é também agora. Anunciamos, como nos ensinava Lutero, a sacralidade de toda criação.

Que estrago enorme fez o neo-platonismo em nossa Igreja, desencarnando-a, descarnando a nossa mensagem, reduzindo-a a uma ginástica cerebral e a um inconseqüente exercício místico.

O pior é que, além do estrago neo-platônico, com o seu dualismo, seu ultramundismo, seu futurismo, vivemos também os estragos causados pelo individualismo da filosofia liberal burguesa contemporânea, que isola os homens do conjunto da sociedade, acentua o seu egoísmo, reduz a sua solidariedade e atomiza o cristão, desagregando o Corpo de Cristo, gerando uma terrível religião da primeira pessoa: “o meu Deus, que cura a minha dor de dente, salva a minha alma e guarda o meu lugar no céu”.

O Evangelho que anunciamos, o Evangelho do Reino, é um Evangelho histórico, que procura chegar a todos os homens e à totalidade do homem. Esse homem pluridimensional em sua composição, em suas necessidades e em suas possibilidades.

O pior, o pior mesmo, é que essas distorções causadas pelo neo-platonismo e pelo individualismo liberal têm se tornado hegemônicas em muitas comunidades cristãs, alçadas ao status de ortodoxia. E, ironia das ironias, absurdo dos absurdos, quando se pretende restaurar a integridade do Evangelho se é suspeito de heresia. Os que cresceram na Igreja, ensinados que uma parte do Evangelho era o seu todo, acham que os que querem restaurar a sua totalidade estão acrescentando pedaços extra e o descaracterizando.

E aqui gostaria de salientar um lamento, um lamento sobre a ignorância histórica da presente geração de cristãos. Sem passado não temos futuro. Sem história não temos identidade. Como entender a igreja e a sua missão sem conhecermos a sua caminhada de acertos e erros, sem entendermos como sistemas, idéias, interpretações e práticas se formaram ou se deformaram?

De um lado, sabemos que o púlpito cristão tem praticado um “atletismo bíblico”, pulando as passagens de conteúdo sócio-político-econômico. Em vez de se ensinar todo o conselho de Deus, se ensina alguns conselhos, aqueles que mais nos convêm. Por outro lado, sabemos que a cátedra cristã pratica um “atletismo histórico”, pulando todas as idéias e práticas da Igreja ao longo de 2 mil anos, que digam respeito à concretude de sua inserção sócio-política-econômica, reduzindo-se a história do cristianismo a uma sucessão de caçadas às almas, construção de templos, frituras de hereges e êxtases místicos.

Os que se voltam para a totalidade das Escrituras e para a totalidade da História estão conscientes de que somos continuadores da obra da criação. Estamos aqui para viver uma vida abundante, não estatisticamente, contemplativamente, mas dinamicamente, caminhando pelas obras que Deus de antemão preparou para que nelas andássemos.

Não é preciso frisar que não somos pré-cadáveres, mas agentes do Reino de Deus. A cidadania desse Reino tem uma dimensão temporal. Somos seres em constante processo de reforma e somos sempre agentes da reforma no mundo.


3. O Espaço de santidade: a sociedade política.

Aqui se entra na questão da autoridade política, na questão do Estado. Fazemos parte, em virtude de nossa natureza, da sociedade civil, da família, da vizinhança e de associações várias. Em todas essas esferas, como cristãos, devemos ser participantes e solidários, presentes e atuantes, seguindo o próprio modelo da Encarnação. Somos igualmente partícipes da sociedade política, cuja liderança é tida por Calvino como uma sacrossanta vocação, pois são chamados para serem ministros de Deus, fazendo com que as leis dos Estados se aproximem da Lei de Deus. É uma virtude dessa vocação serem obedecidos, e se deixarem de ser ministros de Deus para serem ministros do diabo devem ser desobedecidos e substituídos, para que não sejamos tidos por coniventes com os seus crimes e a sua desobediência, como nos ensinava Theodore Beza.

Lamentavelmente a nossa comunidade cristã tem se afastado de sua missão. Somos seres isolados e não integrados à comunidade, egoístas e não solidários, comodistas e não sacrificiais, medrosos e não dispostos ao martírio, preconceituosos e não abertos à convivência com os pecadores e publicanos, instalados no sistema e não inconformados. Cada vez mais estamos dispostos a comer os manjares do rei, a aceitar os acenos de Constantino, a prestar nosso culto a Mamon, a crer que a vida cristã é prosperidade e que a riqueza acumulada em um sistema espoliador é uma bênção divina. Fugimos dos desafios do mundo e escondemos nossas lâmpadas. Deixamos o mundo apodrecer e armazenamos o nosso sal. Quantas vezes a ausência de uma ética política e de um testemunho profético não é pretensamente baseada em uma interpretação maldosamente equivocada do que seja separação entre Igreja e Estado?

A vida cristã é, para a maioria, uma vida medíocre: de casa para o trabalho (ou para a busca do trabalho), do trabalho para casa e da casa para a igreja, na monotonia da rotina, sem brilho, sem novidade, sem cor nem sabor. Vidas que nada contribuem para a História da humana. Comunidades de fé que não fazem falta ao Estado ou à sociedade civil. Energias gastas em programas voltados para dentro e nos intermináveis exercícios de sectarismos denominacionais, que não estão no coração de Deus e de nada servem para a eternidade. Vidas tantas vezes vividas sob a patologia da culpa e da repressão, neurotizadas pelo legalismo.

Para que uma religião que não serve, que aliena e adoece?

“Ah! –poderão argumentar- o importante é a nossa ética pessoal superior! Não bebemos, não fumamos, não dançamos, não freqüentamos bordéis, não lemos revistas pornográficas. Também somos funcionários exemplares”.

Mas isso é tudo? Adolf Hitler não fazia nada disso, e ainda por cima era vegetariano...

Eu mesmo conheci um evangélico que era um funcionário exemplar de uma fábrica brasileira de armamentos, cujos produtos alimentavam a carnificina da guerra Irã-Iraque nos anos 80. Ser competente, a nível micro, em um sistema iníquo, pode significar apenas maior eficiência na iniqüidade.

E que dizer dos milhares de evangélicos que, além de não terem um projeto de ética social, também não têm um projeto de ética individual, vivendo em “santas trambicagens”? Eles oram, são dizimistas, jejuam, pregam, cantam no coro e, ao mesmo tempo, sonegam impostos, mentem, enrolam, exploram os trabalhadores e se envolvem em um sem número de mutretas sem qualquer dor de consciência?

Não, definitivamente não temos um projeto de como bem viver. No máximo temos um projeto de como bem morrer...

Esse evangelho estrangeirizado, opressor e irrelevante não tem porque atrair as multidões.

É verdade que lentamente estamos superando a fase mais aguda de alienação política, de desinformação, de desmotivação, de não participação. É verdade que há uma inquietação no ar, que grupos proféticos surgem aqui, ali e acolá. Mas é igualmente verdade que, grosso modo, estamos trocando a alienação por uma presença conservadora, reacionária, comprometida com os status quo, clientelista e fisiológica. Lotes de votos estão sendo negociados em troca de lotes de terrenos, telhas, tijolos e empregos. Políticos ditos evangélicos têm apoiado teses as mais danosas ao interesse do Bem-Comum do povo brasileiro. Em vez de sermos parte da solução, estamos reforçando os problemas.

A participação política dos cristãos tem se resumido ao limitado espaço dos partidos, ao limitadíssimo espaço de projetos pessoais em formas de candidaturas a cargos eletivos, deixando-se de lado a política de cada dia nas organizações sociais de base.

Não podemos ficar presos ao pêndulo que vai de uma santidade fora da cidadania até uma cidadania sem santidade.


4. Uma fonte de inspiração: o passado.

Felizmente temos outro passo e outra História, mais digna e mais admirável.

Será que é preciso lembrar que somos herdeiros históricos das Revoltas Camponesas do Século XVI, dos niveladores e cavadores dos século XVII, da Rebelião Tsaiping do século XIX?

Será que é preciso lembrar a luta abolicionista de Wilberforce, a luta de Shaftsbury em favor dos menores, dos prisioneiros e das mulheres e de todo o esforço dos evangélicos ingleses de então, em favor das reformas sociais?

Será que é preciso lembrar que a Escola Dominical surgiu para atender às crianças faveladas?

Será que é preciso lembrar que a moderna enfermagem e a Cruz Vermelha surgiram por inspiração de evangélicos misericordiosos?

Será que é preciso lembrar que Finney julgava ser nossa tarefa transformar o mundo e que a falta de responsabilidade social era um obstáculo para o Espírito Santo avivar a Igreja?

Lembranças. Lembranças de William Booth, fundador do Exército da Salvação, nas sarjetas de Londres levando sopa, sabão e salvação aos farrapos humanos. Lembranças dos missionários na Índia, lutando contra o sistema de castas e a queima das viúvas. Lembranças de um cristianismo que construía asilos, escolas, hospitais, distribuía sementes e ensinava novas técnicas agrícolas, que denunciava a escravidão e que ia aos parlamentos lutar por leis mais justas e por uma sociedade mais humana.

Saudades. Saudades de um tempo quando significávamos para este País uma proposta nova e superior: a democracia, a modernidade e o progresso. Saudades do pioneirismo evangélico na pré-escola, na sociedade mista, na escola profissionalizante, na educação física e nos esportes. Saudades de uma geração do século XIX no Brasil, liberal, abolicionista e republicana.

Grata memória. Grata memória dos batistas e pentecostais fundando ligas camponesas e sindicatos rurais no Nordeste brasileiro. Grata memória da Conferência do Nordeste, de 1962, promovida pela Confederação Evangélica do Brasil, sob o tema “Cristo e o processo revolucionário brasileiro”. Grata memória do manifesto da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil, de Vitória, no Estado do Espírito Santo, em 1963.

É verdade que uma série de razões foi concorrendo para a nossa mudança para pior: a Guerra da Secessão norte-americana, a força missionária oriunda dos bolsões escravagistas, a polarização causada pela controvérsia “liberalismo” x “fundamentalismo”, a controvérsia entre “evangelho social” versus “evangelho individual”, o pessimismo do chamado Primeiro Mundo depois da I Guerra Mundial, a influência do dispensacionalismo pré-tribulacionista e pré-milenarista, a disseminação do pentecostalismo branco, a absorção de traços pré-modernos de nossa cultura popular, o aburguesamento das igrejas.

Sem nos esquecermos das trevas do obscurantismo que caíram sobre o Brasil a partir, principalmente, de dezembro de 1968, o abjurar das convicções democráticas por parte dos evangélicos para apoiarem as ditaduras militares na América Latina nos anos 70, o reacionarismo que se abate sobre o Ocidente nos anos 80, a era Reagen-Tatcher-Khol-João Paulo II, a era da “Maioria Moral” e dos tele-evangelistas, a era dos “Documentos da Santa Fé”, a era da enxurrada da sub-teologia fundamentalista e capitalista que invade o chamado Terceiro Mundo, um Terceiro Mundo cada vez mais dependente e cada vez mais miserável.

Lamentavelmente, ao contrário do poeta, no cenário religioso evangélico, “as aves que aqui gorjeiam, gorjeiam como lá”.

Parece que estamos esmagados sob o peso da adversidade, mas o nosso Deus é maior do que a adversidade. O Espírito de Deus é maior do que a lavagem cerebral a que estamos submetidos pela mídia eletrônica. O Evangelho do Reino é poder de Deus acima de todos os poderes.


5. A nossa Meta: Missão Integral – Santidade Integral.

Anunciar o Evangelho do Reino de Deus, ensinar todo o conselho de Deus, suscitar corações misericordiosos e lutar contra as estruturas iníquas, eis a proposta holística, eis a proposta da teologia da Missão Integral da Igreja. Expor toda a Palavra, interceder por todos os problemas, apoiar todas as vocações, edificar todos os fiéis, combater todo o mal.

Cristãos que amam não só de palavras, mas de atos. Atos filantrópicos, atos que apóiem projetos em comunidades carentes, atos que lutem por atacar as causas estruturais da opressão. Igrejas proféticas, cristãos engajados, movimentos de inspiração evangélica. Homens novos comprometidos com um mundo novo, antecipando novidades no mundo. Sinais do Reino. Marcas do Reino. Antecipação do Reino.

Os que têm o Reino de Deus no coração e promovem os valores do Reino de Deus na sociedade atestam a presença do Reino na História.

Podemos ser otimistas?
Otimistas quando obreiros do Senhor se encontram amordaçados, com o leite das crianças ameaçado, com os púlpitos domesticados por sócios-mantenedores, fundamentalistas em teologia e capitalistas em ideologia? Otimistas quando Gramsci nos elogia por termos rompido a ordem feudal e aristocrática e concorrido para as revoluções liberais-democráticas burguesas, mas que duvida da nossa capacidade de darmos um segundo passo em favor do proletariado?

Os cristãos esperam conta a esperança e não agem pelos resultados, mas pela obediência. Não temos outra opção. E, uma vez no caminho, este é um caminho sem retorno, um caminho de riscos. O caminho dos que se converteram a Cristo e foram convertidos por Ele ao mundo por Ele amado, amado até o Calvário; Calvário que é seguido pela ressurreição e ascensão e a promessa de estar conosco e de operar prodígios por nosso intermédio.

Cristãos com a Bíblia em uma das mãos e o jornal do dia na outra mão. Cristãos ortodoxos e ortopráticos. Cristãos abertos às Ciências Humanas, engajados, contextualizados, relevantes. Cristãos brasileiros e contemporâneos. Santos, mas não cabulosos e esquisitos. Cristãos unidos, agraciados com dons e talentos destinados a vocações.

Pastores. Pastores herdeiros de outros pastores, como o reformado Abraham Kuyeper, que chega a primeiro-ministro da Holanda e muda a face de seu país. Pastores herdeiros de Dietrich Bonhoeffer, o luterano que morre por se insurgir contra o nazismo. Pastores herdeiros de Martin Luther King, o batista, que morre por lutar pacificamente contra o racismo de sua pátria dita cristã. Pastores irmãos de Desmond Tutu, o anglicano, símbolo de nossa época, e, como Luther King, também um Nobel da Paz.

Podemos, também no Brasil, vermos surgir uma geração de pastores sem medo?
A nação brasileira não precisa de legalismos e moralismos, mas de uma consciência moral. O nosso discurso moral, o exercício do nosso profetismo não pode se dar no vazio. Ele chega junto de nossos concidadãos na hora em que o mediarmos concretamente nos partidos políticos, nos sindicatos, nas associações e nos movimentos cívicos. O discurso moral se faz história quando se engajava e, em nós, assim, o Verbo se faz carne.

Nessa caminhada de uma cidadania madura e responsável, de uma cidadania como exercício de santidade, devemos seguir a recomendação paulina, examinando tudo e retendo o bem. Tendo as Escrituras como padrão, o Espírito Santo como fonte de discernimento e os valores do Reino de Deus como referência, hajamos, como nos sugere Shaeffer, em co-beligerância com quaisquer pessoas, grupos, movimentos, organizações e instituições que convirjam para aqueles valores, nessa ou naquela situação, nesse ou naquele ponto, mantendo a nossa independência e a nossa identidade, guardando o sagrado depósito de nossa fé, exercitando a piedade.

Se o Reino de Deus não se esgota nos reinos dos homens, nem nenhum sistema ou ideologia com ele se identifica totalmente, devemos evitar os falsos neutralismos, atentar para os pontos de identificação e para onde sopram os ventos libertários da História, pois o nosso lugar nem é em cima do muro nem na contramão dos tempos.

Sonho de um tempo novo? Mero sonho e nada mais que um sonho? Vale a pena sonhar, sonhar além dos nossos pesadelos. O importante é se sentir no centro da vontade de Deus e no centro da História, e que a posteridade não venha a se envergonhar de nós.

Este é um momento histórico. Graças a Deus por ele.
Recentemente li de um teólogo o seguinte:
“Nosso modelo é Jesus de Nazaré... Jesus manifestava em sua comunhão com os homens a mesma ternura que o unia ao Pai. Esse despojamento é condição de possibilidade à verdadeira comunhão com o pobre e significa uma ruptura com os condicionamentos e interesses das classes dominantes. A vida cristã supõe essa imitação do testemunho de Jesus. Porém, Ele não é um simples modelo; é quem dá vida à nossa vida. Só quando desvelamos sua presença no interior de nossa existência é que a vida cristã deixa de ser algo que só intelectualmente é apreendido para se tornar em nós uma profunda experiência de amor entre o homem e o Senhor Ressuscitado”.

É esse Jesus que nos conduz no caminho da obediência, o caminho do seu Reino, que nos tira o medo dos gigantes postados à entrada do mundo ou à saída da Igreja, quem sustenta os nossos braços para o alto e torna poderoso o nosso cajado, que nos aponta par a terra prometida e a libertação do cativeiro, e que em nossa boca coloca palavras de sabedoria e de autoridade.

A cidadania como exercício de santidade nos faz porta-vozes do seu recado: “Não temais... o Senhor pelejará por vós... dize aos filhos de Israel que marchem”.

Em marcha, irmãos, em marcha.
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Este texto serviu de base para a conferência do Rev. Robinson Cavalcante na Igreja Batista Central de Belo Horizonte, MG, em 8 de outubro de 1989.

O Evangelho e os excluídos (Elias Boaventura)


Há uma leve insinuação aos Evangelhos de que João Batista teve alguma dificuldade de assimilar os novos sinais da era messiânica emitidos por Cristo, embora ele, João, tenha sido reconhecido por Cristo como grande profeta de seu tempo.

João, assustado, ao ver o Cristo envolvido com os inviabilizados ou marginalizados, ou ainda pior, os excluídos, indaga: És tu mesmo o Cristo ou devemos esperar outro?

Qual a razão da pergunta? Quem seriam os excluídos com quem Cristo se envolveu? O rol é grande, mas para nosso tempo, incompleto: são eles os cegos, os coxos, os leprosos, os surdos, os mortos e os pobres. Para todos, de acordo com suas necessidades, o Cristo tinha uma resposta além do simples discurso e foi possível mandar uma informação contundente através dos emissários. “Digam a João o que vocês viram e ouviram”! Os atos falam mais alto.

Este rol de exclusões ganha mais sentido se o virmos com olhares acima da rigidez literalista e da inflexibilidade dos fundamentalistas. O excluído é todo aquele que de um modo ou outro se viu lesado pelo poder instruído e colocado à margem da sociedade.

Assim, cego é aquele de quem se quer esconder a realidade social através de sofisticados biombos ocultadores; os coxos certamente são os atropelados de prosseguir na direção de sua realização pessoal; já os leprosos representam homens e mulheres retirados do convívio social e depositados em verdadeira masmorras, para que não contaminem “os bons” e morram em sua dignidade. Continua o Cristo com seu tenebroso rol, mencionando os surdos, todos aqueles aos quais são sonegadas informações sobre o sentido dos acontecimentos.

Por força desta demoníaca exclusão todos acabam por se tornarem empobrecidos e mortos vivos, tolhidos em sua dignidade, cortados por todos os lados , empurrados de maneira brutal para o submundo dos viadutos. Sem opção os homens se tornam pobres em esperança, morrem em suas aspirações e passam simplesmente a vegetar.

O Cristo quer transformar o mundo através “desta gente” e esclarece. No processo revolucionário há que se levar em conta o olhar e a condição de todos, devolvendo-lhes a vida abundante, de modo que aqueles que estão manquejantes tenham restaurada sua capacidade de caminhar, os miseráveis sejam abertamente informados das razões de sua miséria, anunciando-lhes a libertação. E às pessoas e grupos que se encontram já amortecidos, totalmente incapazes de uma ação político social, pelo grau de descrença e anestesiamento social em que se encontram , lhes seja devolvido o sentido da vida e a esperança de luta. Que a todos sejam dadas informações de tudo e que a ninguém se corte a liberdade de expressão.

Para João Batista, estes novos tempos de libertação estavam fora de seus limites de percepção; não lhe era possível imaginar a solução, a partir dos problematizados e enfraquecidos , como queria seu mestre, até porque suas pregações caíram no deserto da indiferença humana, onde ele próprio experimentou o terror da fome.

Dois mil anos depois o quadro mudou pouco e aí se encontram os milhões de excluídos, perambulando entre nós e nos acotovelando em nosso egoísmo. O recado que eles trazem é trágico – “nossa miséria é forte e contagiante e não há a mínima possibilidade de paz social se não formos incluídos”. Não haverá paz no campo e “sem terras”, e nem paz na cidade com “sem tetos”. Segurança e tranqüilidade, só se for para todos, “inclusive nós”.

De fato, o que precisamos entender é que o Brasil é grande; nele cabem confortavelmente todos os brasileiros e, se grande parte se encontra hoje excluída e sem as condições básicas de vida, é porque uma minoria se apossou dos bens produzidos, gerou os milhões de excluídos e afastou a possibilidade de paz.

Quando não incluímos todos, a miséria se vê incluída.